«(...) Clichês que de tempos em tempos as conversas gostam de adotar, eu me divirto como se não houvesse amanhã. (...)»
A nível de empatia a moça que me atendia na loja era do tipo empoderada, tinha a franja desnivelada e potencializava a modernidade do visual com alguma coisa tatuada que começava acima do decote e sumia vestido adentro. Era do tipo que pensava fora da caixinha. Discretamente, enquanto eu anotava todos esses hypes, e mais o piercing no nariz, pedi que conferisse se o PIX tinha caído na conta da loja.
«Total», ela respondeu, estartando a mudança no mindset da semântica.
Perguntei também, caso tivesse algum problema com a compra, se eu poderia fazer a troca?
«Total», ela repetiu, ressignificando o «sim» dos antigos com um viés up to date e me apresentando o novo modismo que enfeita a língua dos todos, todas, todes e todys que acham feio falar simples.
Eu tenho esbarrado numa quantidade imensa de pessoas que deixaram de lado as três letrinhas afirmativas e, como se combinasse melhor com o tom do jeans que vai ser onda no verão, disparam «total» na direção de meus ouvidos. Devem achar que o português fica, tipo assim, mais robusto.
Vamos combinar que eu poderia reclamar, dar uma de Antônio Houaiss das antigas, e pedir que fossem todos mais assertivos, roçassem pelo menos uma vez na vida a língua na língua de Luis de Camões. Sou resiliente, porém. Simples assim.
Diante desses clichês que de tempos em tempos as conversas gostam de adotar, eu me divirto como se não houvesse amanhã. Embora não tenha lugar de fala, obrigado profissionalmente a fugir dos chavões, acho que pelo menos na cena da loja eu me saí bem.
Ao me despedir da moça, evitei a banalidade matusalém do «obrigado». Ninguém quer ser disruptivo num momento em que a sinergia é tudo. Disse-lhe «gratidão», mesmo já tendo ouvido gente bem mais atualizada, gente de fato com lugar de pertencimento, que radicalizou o processo na construção do novo modus linguístico – e mandou na lata um exponencial «gratiluz».
«Magina», a moça respondeu.
Contextualizando. Acho que tudo começou nos anos 1980 com o «a nível de», por isso fiz a homenagem logo no primeiro parágrafo, como se mandasse um beijo no coração da memória. Depois a onda passou pelo «enquanto mulher». O foco é sempre a necessidade de encher a boca de palavras empoladas, de agregar valor, ser diferenciado, emular um psiquismo qualquer. De bobagem em bobagem, no tocante e em questão, a falta de sentido em muitas dessas expressões chegou ao line up em moda hoje.
Todo mundo sempre quis ficar por dentro, faz parte da vibe humana, mas agora essa necessidade soa de um modo mais pontual e pretensioso. O hipado é ser inclusivo.
Então. A língua é incontrolável. Estará sempre à procura de algum prazer, e não sou eu, que vivo a dor e a delícia de mexer com ela, quem vai entrar em burnout. Não reclamo dessas narrativas dos lugares-comuns. Que cada um viva sua experiência, quebre paradigmas, seja distópico e saia da zona de conforto. Total. Sem medo de ser feliz. Que cada um diga o que lhe parece soar bonito para a língua, como todo o resto da nossa encenação pública, ficar instamagrável.
É sobre isso, e tudo bem.
Cf. Gratidão + Modismos linguísticos que devem ser evitados + Os 17 termos que ganharam destaque em 2019 que você precisa conhecer + Depois do ‘burnout’, a sisifemia invade empresas e atormenta trabalhadores