A imagem* apresenta uma ementa que imediatamente identifica a especialidade de um restaurante português: os pratos grelhados. Na ementa, por entre vários pratos de peixe, todos eles preparados na grelha, lê-se «sardinha grelhada». A expressão pode passar sem comentário nem exemplo, porque, à pergunta «então, o que vai ser?», uma resposta previsível é «uma dose de sardinhas assadas».
Tudo se passa depois sem sobressalto, como cumpre em Portugal, sobretudo em junho, quando se festejam os Santos Populares. Quem serve à mesa satisfará o pedido, trazendo mais cedo ou mais tarde uma travessa de sardinhas apetitosas — e “assadas” ou “grelhadas”?
A dúvida já foi abordada no Ciberdúvidas algumas vezes (por exemplo, em “Assar ou grelhar” e “Pão cozido”), e os pareceres favorecem a expressão «sardinhas assadas», pelo menos, do ponto de vista do uso mais corrente em Portugal continental. Nada disto leva a rejeitar «sardinhas grelhadas», pelo contrário, e a ementa aqui em causa atesta-lhe o uso; mas a verdade é que «sardinhas assadas» é (ainda) a referência tradicional à preparação deste clupeídeo numa grelha sobre brasas ou equivalente (uma chapa). Outros peixes, mesmo que grelhados, podem também ser “assados”: é o caso dos carapaus na grelha, geralmente «grelhados», mas também «assados»; e o de «bacalhau assado», provavelmente bacalhau que é grelhado — se não for ao forno, por exemplo, com cebola e alho.
O famoso Livro de Pantagruel (83.ª edição, 2023) confirma o atrás exposto, porque define grelhar como «cozinhar em grelha sobre a acção directa do lume ou em frigideira apropriada» (p. 1105; mantém-se a ortografia do original citado); a mesma fonte define assar deste modo: «Cozinhar, por ação do calor do forno ou de braseira (no caso do espeto), mas sem contacto direto com chama. Por excepção, os carapaus, as sardinhas e o bacalhau grelhados dizem-se “assados”. Modismos...» (p. 1110).
Na citação, é de crer que o termo modismo ocorra, não no sentido de «moda passageira», que muitas vezes se censura, mas certamente antes na aceção de idiomatismo (cf. dicionário da Academia das Ciências de Lisboa) – quem se atreveria a corrigir expressões tão popularmente enraizadas? E na perspetiva idiomática, sabe-se também que os verbos que denotam maneiras de confecionar os alimentos podem facultar usos fixos como contraexemplos da sistematização descritiva de grelhar, assar ou até cozer. Basta lembrar o caso de «cozer pão» e «cozer um bolo», que são cozinhados num forno, ainda que no último caso, o de «cozer um bolo», pareça haver preferência por «assar um bolo» entre falantes do Brasil.
Mais raro ou nulo se torna o uso de assar a respeito de outros peixes grelhados. Uma posta de peixe-espada na grelha ou na chapa «será peixe-espada grelhado» e dificilmente será chamado «peixe-espada assado», a não ser que vá ao forno. Na verdade, falar de «peixe assado no forno» é literalmente pegar em certo peixe – um goraz robusto, um pargo imponente ou mesmo uma posta avantajada do antigamente chamado «fiel amigo» (bacalhau) – e cozinhá-lo no forno. Daqui se conclui a substancial diferença existente entre «assar nas brasas», que é ao que se sujeitam as sardinhas, e «assar no forno».
Enfim, o verbo assar tem caprichos quando se trata de tradições populares, aparecendo a concorrer com grelhar. Quem se detenha a pensar ou a escrever ementas de grelhados, de pouca diferença se dará conta. E, na dúvida, sabendo que não vão ao forno e para não destoarem do cardápio, com zelo lógico-semântico, até haverá quem generalize grelhar às próprias sardinhas.
* Agradeço a Paulo J. S. Barata a imagem e a chamada de atenção para este caso.