«(...) Se toda a língua é o oposto da guerra, a nossa, tão mulher, tão mãe, feita de sutilezas e mistérios; enriquecida por tantos outros idiomas e experiências, está particularmente vocacionada para estabelecer pontes e abraços. (...)»
Minha mãe se dedicou ao ensino da língua e da literatura portuguesa não só pelo amor a esta, mas, sobretudo, por amor aos seus alunos.
Minha mãe está desaparecendo aos poucos, como um arco-íris se dissolvendo num céu de verão. Todos os dias, sempre sorrindo, ela abandona um gesto, desiste de uma palavra, apaga uma memória. Talvez pense que se for embora assim, pouco a pouco, nós sofreremos menos. Delicadeza – aprendi com ela – é a arte de não ferir os outros.
Dorinda foi, durante mais de 50 anos, professora de língua portuguesa. Os seus alunos, hoje espalhados um pouco por todo o mundo, formam uma espécie de irmandade difusa. Durante a guerra em Angola, no meu trabalho como jornalista, muitas vezes usei o meu sobrenome (o sobrenome dela) como salvo-conduto. Lembro-me de guerrilheiros nervosos, mal-encarados, cujo rosto se iluminava com um largo sorriso, mal eu me identificava:
«Agualusa? É o filho da professora Dorinda? Pode passar…»
Alguns desses antigos alunos insistem em contar-me episódios que viveram com ela: uns contam de como descobriram o prazer da leitura nas aulas de português; outros lembram-se sobretudo do talento da minha mãe como pacificadora e diplomata.
Na quinta-feira passada (passada para vocês; para mim, enquanto escrevo estas linhas, é ainda a presente quinta-feira), comemorou-se o Dia da Língua Portuguesa [em 5 de maio]. Domingo, festeja-se o Dia das Mães. Faz sentido que as duas comemorações estejam tão próximas: afinal, língua também é mãe, também nos gera, nos forma e nos acrescenta identidade. Por isso gosto tanto da expressão «língua materna».
Com a minha mãe aprendi não apenas a amar os livros e a língua portuguesa; aprendi que o percurso de uma língua — a vida de cada uma das palavras que a forma – conta a história do mundo.
A língua portuguesa é a soma de todas as suas inúmeras variações. A riqueza desta nossa língua, a sua maior virtude, resulta de se ter expandido e enraizado em territórios muito diversos, absorvendo palavras, expressões e formas de dizer de outros idiomas.
Em Portugal, ainda é comum tropeçar com comentários depreciativos sobre as variações brasileiras ou africanas da língua portuguesa. Recentemente, a imprensa portuguesa noticiou a preocupação de alguns pais pelo fato do seus filhos pequenos, fãs de youtubers brasileiros, estarem adotando vocábulos do português do Brasil. Acho isto extraordinário: a ignorância! A esta altura já todos os portugueses deveriam ter compreendido que a língua é uma só, e que não se consegue acompanhar a evolução de uma das suas variações sem conhecer as restantes. Não se pode amar a língua portuguesa desprezando um único dos seus ramos. Seria como amar uma pessoa pela metade.
Se toda a língua é o oposto da guerra, a nossa, tão mulher, tão mãe, feita de sutilezas e mistérios; enriquecida por tantos outros idiomas e experiências, está particularmente vocacionada para estabelecer pontes e abraços.
Creio que, como qualquer bom professor, minha mãe se dedicou ao ensino da língua e da literatura portuguesa não só pelo amor a esta, mas, sobretudo, por amor aos seus alunos. Foi a maneira que encontrou de tentar melhorar o mundo. Provavelmente, melhorou.