Na tomada de posse do novo Governo português 1, José Sócrates 2 reservou um curto parágrafo, já no final do seu discurso, para assegurar que a lusofonia constituirá um dos vértices do triângulo estratégico da política externa portuguesa, sendo os outros dois a União Europeia e os Estados Unidos. Não explicou porquê. Creio, no entanto, que vale a pena fazer a pergunta: para que serve aos portugueses a lusofonia?
Ainda antes – o que diabo é isso?
Finalmente, resta uma terceira questão a considerar: estarão os chamados países lusófonos interessados na lusofonia?
Viajei bastante, ao longo dos últimos anos, pelos países e territórios onde se fala a nossa língua. Verifiquei durante essas viagens que a palavra lusofonia não significa exactamente a mesma coisa em todos esses lugares. Creio, inclusive, que a maioria dos cidadãos lusófonos não sabe muito bem o que ela significa. Mesmo no Brasil, cujos habitantes, na sua esmagadora maioria, falam português como língua materna, inúmeras vezes me achei na situação de ter de explicar o que se pode entender (ou o que eu entendo) por lusofonia. Já em Angola, em Moçambique, e até em Goa, a palavra desperta frequentemente suspeitas ferozes. Não significa isto que se deva abandonar o termo – muito menos o conceito – até porque já não é provável que entretanto se consiga forjar outro melhor. Mas talvez devêssemos começar por investir no esclarecimento e no debate.
A lusofonia é, simultaneamente, mais, e menos, do que o conjunto dos países onde se fala português. É mais, porque inclui os imigrantes lusófonos, cujo número, em países como os Estados Unidos, a França ou a África do Sul, ultrapassa até, por exemplo, a população do arquipélago de São Tomé e Príncipe. Inclui ainda fragmentos dispersos de populações de matriz portuguesa, que, não obstante o isolamento, continuam a falar português desde o berço, como acontece em Diu. É menos, porque em alguns dos países de língua portuguesa, como em Timor ou em Moçambique, só uma reduzida percentagem da população se comunica em português. Importa ainda referir que em todos os países de língua portuguesa, incluindo em Portugal, se falam outras línguas nacionais.
Presumo que no triângulo imaginado por José Sócrates a Europa represente, grosso modo, o dinheiro, os Estados Unidos a segurança, e a lusofonia a identidade. Obviamente não será fácil para Portugal manter uma identidade forte, dentro de uma Europa alargada, se perder a ligação ao espaço lusófono. O desafio para Portugal passa pois por construir, a partir da lusofonia, enquanto memória histórica, um novo rosto para o futuro, e isto sem comprometer nem a sua segurança nem a sua prosperidade.
A última questão talvez seja a mais difícil de responder. Creio que os maiores inimigos de um projecto lusófono moderno não estão fora das fronteiras dos nossos países. Vivem entre nós, e são milhões. Muitas das pessoas que em Angola, em Moçambique ou em Timor, reagem com desconfiança, senão mesmo com violência, à simples menção da palavra lusofonia, fazem-no por receio de que a sua própria identidade linguística e cultural possa ser ameaçada pela afirmação e crescimento de um tal projecto. Convém escutar e dialogar com estas pessoas, ao invés de combatê-las. São receios fundados. A língua portuguesa enraizou-se em Angola, após a independência, com uma rapidez absolutamente extraordinária, devendo ser já o principal idioma materno dos angolanos, mas isso fez-se de forma brutal e implicou resistências. As correntes xenófobas, racistas e ruidosamente antiportuguesas que hoje prosperam em Angola aproveitam-se, naturalmente, do rancor resultante deste fenómeno.
No Brasil, país gigantesco, em larga medida ignorante de si mesmo, quanto mais do que lhe é exterior, a indiferença costuma ser o principal sentimento quando se fala de lusofonia. Alguma coisa, todavia, está a mudar. A nível institucional o Brasil começou a desenhar, com o Governo de Lula, uma política externa que passa pela sua afirmação no espaço da língua portuguesa. A nível cultural assiste-se a um claro florescimento das relações entre o Brasil e Portugal, por um lado, e o Brasil e África, por outro.
Infelizmente há ainda em Portugal quem veja no Brasil um concorrente no que respeita à cooperação com os países africanos onde se fala a nossa língua, ao invés de um parceiro. Por outro lado, a forma, digamos, pouco firme, como os sucessivos governos portugueses, desde 1975, têm lidado com os regimes africanos não democráticos também não contribuiu em nada para o desenvolvimento nesses países de uma simpatia para com os ideais da lusofonia.
José Sócrates talvez não tenha mostrado um grande entusiasmo, no seu discurso, pela causa da lusofonia (nem por qualquer outra causa, reconheço); contudo, a escolha de João Gomes Cravinho para secretário de Estado da Cooperação permite-nos a nós, que acreditamos nessa causa, algum entusiasmo. João Gomes Cravinho (um Cravinho de origem angolana, vale realçar, especiaria rara) conhece muito bem o terreno onde vai trabalhar e tem ideias próprias. Desejo-lhe boa sorte.
1 Realizou-se a 12 de Março de 2005 a cerimónia da entrada em funções do XVII Governo Constitucional português.
2 Primeiro-ministro português, desde esta data.
* Crónica saída na revista dominical do jornal português “Público”, do dia 20 de Março de 2005, com o título original "Deveria ser a base, José, e não um vértice".
Cf. Conceito de Lusofonia, de Maria Sousa Galito.