«Nenhum dicionário português regista "cartar", nem como termo popular.»
Nos países lusófonos de África, muita gente diz “cartar água”, uma corruptela de «acarretar água» (cf. dicionário da Academia das Ciências de Lisboa) ou «acartar água».
Com o título “Cartar água ou acarretar água?”, este sítio angolano comenta (* indica incorreção):
«É muito comum ouvirmos, sobretudo nos bairros periféricos, frases como “*vou cartar água; *o João foi cartar água”.» (Aprender mais. usos e desusos da língua, Facebook, 21/08/2020).
No contexto acima, a forma correta é «acarretar água», pois acarretar significa «transportar em carreta ou similar, transportar por qualquer meio, carregar, levar, etc.
No Dicionário Informal, lemos: «Cartar [...] Transportar, carregar (ao ombro ou às costas). “...sem os escravos que deviam cartar a água, pois estes foram carregar as imbambas...” (Pepetela, in A Gloriosa Família).»
Nas redes sociais moçambicanas, há quem afirme, perentoriamente, que toda a gente, em Moçambique, diz “cartar água” em vez de «acarretar água» ou «acartar água».
Li, por exemplo, estes dois comentários:
1. «[...] tenho certas dúvidas porque nunca ouvi alguém a dizer "acarretar água do poço". Há mais ou menos 15 anos, ter uma torneira em casa, cá, era luxo. Hoje quase toda a gente tem uma torneira em casa. Sempre ouvi, em miúdo, e sem distinção de nível académico, "cartar água".»
2. Aqui em Moçambique eu nunca direi acarretar. O meu povo não fala assim. O meu povo diz "cartar". Vou parecer estranho se eu disser acarretar...»
Será que os moçambicanos que conhecem bem o português dirão sempre “cartar água”?
Ou existe muita gente que tem noção de que “cartar água” é uma deturpação popular criticável, como acontece com certas deturpações cá em Portugal (“auga” em vez de água; “almorroida” em vez de hemorroida; “mortandela” em vez de mortadela, etc.)?
Um amigo meu moçambicano, com estudos superiores, diz-me o seguinte:
«Cartar é o que vingou, meu caro. Eu oiço desde a infância.»
Respondi-lhe:
«Mas ouves montes de coisas desde a infância que não dizes, porque estudaste...»
Em "cartar", deu-se o fenómeno fonético chamado aférese, que a Infopédia define assim:
«AFÉRESE – Fenómeno fonético de supressão de um segmento no início de palavra. Trata-se de um fenómeno muito frequente que ocorreu durante a evolução do latim para o português moderno, (ver exemplos i- iii), e que ainda pode ser observado no português atual, em variantes diastráticas (ou socioletos) menos instruídas (ver exemplos iv e v) ou na oralidade (conjugação do verbo estar – ex: vi):
i) apotheca(m) > bodega e botica
ii) illu(m) (no latim) > lo (no período medieval) > o
iii) episcopu(m) > bispo
iv) <letria> em vez de <aletria>
v) <inda> em vez de <ainda>
vi) <tou>, <tas>, <tá>, <tamos>, <tais>, <tão> em vez de <estou>, <estás>, <está>, <estamos>, <estais>, <estão>.»
Nenhum dicionário português regista cartar, nem como termo popular. Os dicionários brasileiros também não o apresentam, mas incluem o verbo homónimo cartar, «falar ou demonstrar algo que não é verdadeiro» –no Houaiss, por exemplo.
1 Quibala, também grafada como Kibala, é uma cidade de Angola, na província de Cuanza Sul.
Apontamento que o autor publicou no seu mural no Facebook (17/01/2025).