Há factos inquestionáveis: os dados pessoais de imigrantes russos promotores de uma manifestação em Lisboa contra a prisão, em Moscovo, do oposicionista Alexei Navaln, chegaram à Embaixada da Federação da Rússia.
Independentemente das implicações legais e políticas, o caso levanta também questões de natureza lexical de importância maior: qual o termo mais adequado para descrever a atuação da Câmara Municipal de Lisboa (CML)? Na comunicação social, encontramos o recurso a diferentes palavras no âmbito da classe do verbo (enviar1, divulgar2, comunicar3, informar4, partilhar5, revelar6) ou da classe do substantivo (reprodução7, delação8).
Como tudo em língua, nenhuma destas opções é inócua. Na verdade, antes pelo contrário, elas revelam uma tomada de posição do locutor relativamente aos factos e também uma avaliação do ato em questão. E é por esta razão que em jornalismo é tão difícil ficar pela objetividade da mera reprodução da informação. As palavras não querem deixar, as palavras traem e denunciam pensamentos. Queira-se ou não revelá-los.
Um dos verbos usados na descrição pela imprensa foi enviar. Um verbo bastante objetivo, que descreve o ato de «fazer seguir para alguém ou para determinado lugar»9 e revela a perspetiva de que o conhecimento dos dados dos manifestantes por parte de outros que não a CML resultou de um ato ‘administrativo’. Repare-se, todavia, que o verbo enviar pede um agente, o que significa que há sempre alguém que executa o ato e que é responsável por ele. Valor semelhante têm verbos como comunicar ou informar, apresentados com o sentido de «transmitir uma mensagem» ou de «dar conhecimento». Este implicam também a existência de um agente ativo e consciente, que pratique a ação descrita pelo verbo. Descrever o ocorrido por meio do verbo divulgar já denuncia a sua associação a uma intenção mais vincada porque o verbo descreve a intenção explícita de tornar algo conhecido e de o revelar a um número considerável de pessoas. Usar o verbo partilhar traz outras implicações. Só se partilha o que é seu porque partilhar é «dividir com alguém». Recorrer a este verbo traduz a ideia de que a CML quis conscientemente deixar de ser a “dona” de uma dada informação, tendo preferido dividi-la com outras entidades. Este é um ato deliberado que implica o conhecimento da identidade daquele que vai receber o que se divide. Não se partilha em abstrato. Partilha-se sempre com alguém concreto e que o agente identifica. Descrever a situação por meio do verbo revelar é aproximar o acontecimento de uma intenção menos lícita, uma vez que só se revela o que está escondido, ou seja, um facto de que não se tem conhecimento público. Este ato de dar a conhecer implica a consciência da existência de algum tipo de secretismo associado ao evento.
Preferir o substantivo reprodução (de informação) para referir a situação é querer tirar-lhe intenções negativas, uma vez que o nome descreve uma cópia que se obtém por imitação (que poderá ser conseguida mecanicamente). Por fim, o termo delação traduzirá talvez a avaliação mais pesada levada a cabo pela imprensa porque implica associar o ato de revelar algo secreto a um delito, opção normalmente movida por algum tipo de interesse.
As palavras não são neutras e quem as escolhe tem sempre opiniões que, ainda que encobertas, acabam por vir à tona reveladas por essas mesmas palavras.
P.S. – Sobre este assunto, muitos jornais tem usado também o termo Russiagate (cf. jornal Expresso) – que bem podia ser traduzido por «o caso russo», por exemplo.
1. cf. «Câmara de Lisboa enviou para Moscovo dados pessoais de três ativistas russos em Portugal», in Sapo 24
2. Cf. «CML-Rússia: Ex-Governador Civil diz que era impensável divulgar dados dos promotores de manifestações», in Expresso
3. Cf. «PS diz que caso de comunicação de dados à Rússia é "lamentável" e anuncia nova lei sobre manifestações», in Ionline
4. Cf. «Câmara Municipal de Lisboa. Ex-Governador Civil diz que era "impensável" divulgar dados dos promotores de manifestações», in Observador
5. Cf. «Quantos dados de manifestantes foram dados a embaixadas? Auditoria “vai começar agora”», in Público
6. Cf. «Associação quer garantias de que não serão revelado dados dos ucranianos em Portugal», in Rádio Renascença
7. Cf. «CML justifica envio de dados à Rússia e fala em "aproveitamento político"», in Diário de Notícias
8. Cf. «Governo português estava informado sobre a delação da Câmara de Lisboa», in RTP
9. Todos os significados apresentados neste texto seguem o Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea, da Academia das Ciências de Lisboa.
Cf. Lisboa enviou dados pessoais para embaixadas em pelo menos 52 protestos + Medina pede "desculpa". "Erro lamentável e que não poderia ter acontecido"