« (...) Tanto de um lado quanto de outro, não é um ódio puro. Vem misturado com o medo. E este já está embutido na própria definição de ódio, como Sérgio constatou ao dar uma espiada no Dicionário Houaiss. Lá está: "Ódio. Aversão intensa, geralmente motivada por medo, raiva ou injúria sofrida." Donde, para mim, medo passa a ser a segunda palavra do ano. (...)»
Sérgio Rodrigues, brilhante escritor e jornalista brasileiro, meu colega na Folha de S. Paulo, não quis esperar o ano acabar. Em sua coluna no jornal, em que trata de questões relativas à língua portuguesa, lançou há duas semanas a sua sugestão para a palavra do ano no Brasil: ódio. E explicou: «Não foi nos livros que a encontrei. Foi nas ruas do meu país.»
Sérgio se refere ao estado de coisas provocado pela polarização em torno de Jair Bolsonaro e Fernando Haddad, os candidatos que estarão disputando hoje nas urnas a presidência da República brasileira. Os partidários de um e de outro construíram um discurso de ódio mútuo, a tornar impossível qualquer discussão civilizada sobre os defeitos ou virtudes de cada um. Não há mais tolerância. Amigos de longa data, que se encontravam para jantar pelo menos uma vez por mês, romperam relações porque um deles passou a apoiar este ou aquele. Casais deixaram de dormir juntos. Pais e filhos estão estremecidos. Na semana passada, estourou uma briga a socos na sala de espera do meu dentista – fui deixado na cadeira, com os ferrinhos dentro da boca, enquanto ele saía para tentar separar os litigantes. As ruas vivem cheias de manifestações, e é um milagre que, até agora, milhares de ativistas dos dois lados não tenham se encontrado numa esquina e se atirado a um conflito monstro capaz de paralisar a cidade. O Facebook transformou-se num palco de insultos e fake news. E tudo por causa da política.
Para quem não vive no Brasil e acompanha apenas por alto o noticiário, parece uma equação simples: depois das eleições de primeiro turno, envolvendo oito ou dez candidatos, quase todos de centro, sobraram dois – um, Haddad, de esquerda; o outro, Bolsonaro, de extrema-direita. Normal, não? Não. Não era obrigatório que terminasse assim. Na verdade, só aconteceu porque os dois lados tudo fizeram nos últimos meses para que o desfecho fosse exatamente este. Um queria o outro como adversário, na certeza de que seria o mais fácil de derrotar. Pois bem, eles conseguiram. A surpresa foi a de que, de repente, um dos lados – o de Bolsonaro – tornou-se quase impossível de derrotar. Seu contingente de odiadores é maior.
Mas, tanto de um lado quanto de outro, não é um ódio puro. Vem misturado com o medo. E este já está embutido na própria definição de ódio, como Sérgio constatou ao dar uma espiada no Dicionário Houaiss. Lá está: «Ódio. Aversão intensa, geralmente motivada por medo, raiva ou injúria sofrida.» Donde, para mim, medo passa a ser a segunda palavra do ano.
Se Bolsonaro desperta medo por suas posições racistas, homofóbicas, misóginas, autoritárias e antidemocráticas e pelos ferrabrases que o cercam, Haddad, bom sujeito, mas invertebrado, representa a possibilidade da volta de Lula e do PT ao poder. E isso, segundo as pesquisas, assusta mais o brasileiro do que a ameaça de Bolsonaro. Os eleitores se impressionaram com a capacidade de Lula, mesmo atrás das grades numa prisão em Curitiba por corrupção passiva e lavagem de dinheiro, influir no jogo eleitoral no primeiro turno, fazendo e desfazendo alianças entre políticos e partidos, como de seu estilo, para que Haddad chegasse à reta final. E sabem que, se eleito, Haddad terá de indultar Lula e este será o presidente de facto.
Não é só por isso, claro. Para a campanha do segundo turno, Lula deixou-se apagar temporariamente da propaganda de Haddad e este passou a falar em Deus e na família para se parecer com Bolsonaro. Mas ninguém acreditou, e o principal não aconteceu: o PT não admite os erros que cometeu em 13 anos de poder, sua participação ativa na corrupção que quebrou o país e uma vocação igualmente autoritária, confirmada pela recente afirmação de seu ideólogo, José Dirceu, de que o partido estaria «perto de tomar o poder – o que é diferente de ganhar a eleição». Tal frase deve ter rendido milhões de votos para Bolsonaro.
E assim chegamos à encruzilhada de hoje – ideal, não para uma disputa presidencial, mas para um despacho de macumba. Há um certo consolo em saber que restam muitos brasileiros sem ódio e sem medo, nem de Bolsonaro nem de Haddad – apenas com uma repulsa pelo que está à frente de um e por trás do outro. E esperando que o Brasil seja grande o suficiente para absorver qualquer dos dois pelos próximos quatro anos, digeri-lo e, em seu tempo, expeli-lo, até que surja alguém melhor.
Artigo publicado no jornal português Diário de Notícias de 28 de outubro de 2018.