« (...) Como uma língua histórica, concebida em toda sua dimensão no tempo, no espaço, nos estratos sociais e nos níveis de estilo, dizíamos, reúne um conjunto de línguas funcionais, entendidas como uma variedade que funciona efetivamente em cada comunidade linguística, fácil se conclui que cada uma dessas variedades possui a sua pauta da correção, a sua norma historicamente determinada. (...)»
Longe de recolher-se a um ostracismo pelo peso de seu passado de mais de dois mil anos no cenário dos estudos relativos à pesquisa e ao ensino de línguas, a gramática, pelo esforço e arte de seus melhores cultores, tem procurado, nestes últimos anos, acompanhar e beneficiar-se do progresso que vêm experimentando antigas e novas disciplinas envolvidas direta e indiretamente com o complexo fenômeno da linguagem.
Muitas vezes tem sobrado negativamente para a responsabilidade da gramática, entendida como método analítico de descrição e análise do objeto língua, as justas críticas que fazem ao método didático de transmissão de conhecimento deste mesmo objeto. Neste sentido, o método didático aplicado ao ensino de línguas estrangeiras, favorecidas pelas suas especificidades, tem logrado mais largos êxitos do que quando aplicado ao ensino da língua materna.
Esta inter-relação natural entre o método analítico de descrição e análise da língua e o método didático à transmissão de conhecimentos tem criado e favorecido uma onda de descrédito altamente prejudicial que resulta no estabelecimento de um fosso entre a gramática descritiva, de natureza científica, e a gramática prescritiva ou normativa, de caráter pedagógico, vista esta como produto e abuso do conservadorismo elitista, apesar das judiciosas ponderações de bons linguistas e da orientação ditada pelo bom senso. Entre os estudiosos modernos que se destacam pelo equilíbrio na discussão do problema está o linguista David Crystal que, no capítulo inicial de sua instrutiva e bem elaborada The Cambridge encyclopedia of language, assim se manifesta, numa citação do linguista brasileiro Francisco Gomes de Matos, da Universidade Federal de Pernambuco, ele mesmo campeão entre nós dos direitos linguísticos individuais. Diz Crystal com tal propriedade, que suas palavras deveriam ser a pá de cal nessa falsa dicotomia que tem servido de bandeira desfraldada em livros e artigos de nossa imprensa:
“Se deixarmos de lado estes estereótipos, podemos ver que ambos os enfoques são importantes e têm mais coisas em comum do que as que habitualmente se reconhecem; entre as quais se inclui um interesse mútuo por questões como a adaptabilidade, a ambiguidade e a inteligibilidade. O enfoque descritivo é essencial porque constitui a única maneira de reconciliar as pretensões discordantes de modelos diferentes; quando conhecemos os fatos do uso da linguagem, encontramo-nos em melhor posição para evitar as idiossincrasias das opiniões particulares e para aconselhar de forma realista sobre questões de ensino ou de estilo. O enfoque normativo proporciona uma maneira de orientar o sentido do valor linguístico que todos nós temos e que, no fundo, faz parte de nossa visão de estrutura social e de nosso lugar dentro dela. Seria quiçá ingênuo esperar que, depois de 200 anos de disputas, se consiga um entendimento imediato dos contrários, mas existem razões para sermos otimistas, depois que os sociolinguistas estão começando a examinar mais seriamente o prescritivismo em determinados contextos, como o de explicar as atividades, usos e crenças linguísticas.”
Também por parte dos teóricos das linguagens de língua portuguesa, já era corrente, desde a metade do século passado, a boa lição que pregava os laços íntimos entre os dois enfoques. Assim, Herculano de Carvalho, em Portugal, sobre o ensino da língua materna, já preceituava:
«O ponto de partida, não apenas o melhor, mas verdadeiramente essencial, para que o ensino da língua materna seja de fato o que deve ser plenamente eficiente, reside numa exata compreensão do fenômeno linguístico em geral.»
Nesta mesma trilha orientou-nos J. Mattoso Câmara Jr., em sua Estrutura da Língua Portuguesa:
«A gramática descritiva (…) faz parte da linguística pura. Ora, como toda ciência pura e desinteressada, a linguística tem a seu lado uma disciplina normativa, que faz parte do que podemos chamar a linguística aplicada a um fim de comportamento social. Há assim, por exemplo, os preceitos práticos da higiene, que é independente da biologia. Ao lado da sociologia, há o direito, que prescreve regras de conduta nas relações entre os membros de uma sociedade (…). Assim, a gramática normativa tem o seu lugar e não se anula diante da gramática descritiva. Mas é um lugar à parte, imposto por injunções de ordem prática dentro da sociedade. É um erro profundamente perturbador misturar as duas disciplinas e, pior ainda, fazer linguística sincrônica com preocupações normativas».
Armou-se a gramática de numerosas noções do aparato teórico desenvolvido por notáveis linguistas modernos que lhe permitiu, sem favor, caminhar pari passu com disciplinas modernas amparadas por forte requisito de cientificidade.
A primeira extraordinária orientação renovadora foi compreender a linguagem nas suas três dimensões: a universal, a histórica e a particular (ou circunstancial), o que lhe permitiu estar ciente de que não se comunica e não se expressa só mediante a língua, mas com a competência do falar em geral (plano ou dimensão universal) e com a competência textual (plano ou dimensão particular). A dimensão universal da linguagem se manifesta no saber elocutivo, pressuposto para todas as línguas, que consiste no conhecimento dos princípios mais gerais do pensamento, um conhecimento geral das coisas do mundo objetivo e um conhecimento que elege uma interpretação dentre várias interpretações possíveis que uma língua particular oferece. Atender às normas do saber elocutivo diz-se falar com coerência, falar com sentido. Dessarte, a coerência não é propriedade de uma língua particular, mas do manifestar o pensamento mediante a língua.
A dimensão particular ou circunstancial da linguagem se manifesta no saber expressivo ou competência textual, que consiste em saber estruturar textos em situações determinadas. Atender às normas do saber expressivo diz-se expressar-se com adequação, e, se levar em conta o objeto representado ou o tema, será considerado adequado; se o destinatário será apropriado e se a situação ou circunstância será oportuna.
A dimensão histórica da linguagem se manifesta no saber idiomático, isto é, no conhecimento de uma língua particular. Atender às normas do saber idiomático diz-se correção: expressar-se com correção é saber falar de acordo com a tradição linguística de uma comunidade historicamente determinada.
Como uma língua histórica, concebida em toda sua dimensão no tempo, no espaço, nos estratos sociais e nos níveis de estilo, dizíamos, reúne um conjunto de línguas funcionais, entendidas como uma variedade que funciona efetivamente em cada comunidade linguística, fácil se conclui que cada uma dessas variedades possui a sua pauta da correção, a sua norma historicamente determinada.
Tal concepção representa uma revolução não só no conceito de correção idiomática, mas também nos juízos de valor dos saberes elocutivo e expressivo, isto é, como já vimos, na congruência e na expressividade textual.
Até há bem pouco — e infelizmente ainda hoje persiste em alguns estudiosos — chamava-se correção a qualquer conformidade de norma relativa às três dimensões da linguagem aqui referidas, assim, considerava-se incorreto qualquer mau uso no plano do saber elocutivo expressivo (adequação textual). Correção só se aplica, a rigor, ao saber idiomático.
Com esta mudança de conceitos, ficou a gramática — tanto no enfoque descritivo quanto no enfoque normativo — habilitada a entender que nem todos os fatos de linguagem pertencem ao seu objeto de estudo, isto é, à língua particular. Ora, o perfeito reconhecimento de seu objeto de estudo representa a primeira consideração necessária e indispensável a uma investigação adequada e coerente. Assim, a dimensão da tradição vinda dos lógicos sobre a pertinência ou não de frases do tipo «A mesa quadrada é redonda» extrapola a competência do saber idiomático para inserir- se no domínio do saber elocutivo, salvo se o falante tiver mesmo a intenção de falar incongruentemente e ser compreendido pelo seu interlocutor, dado o entorno que envolve as circunstâncias do discurso.
Assim também fica a gramática habilitada a compreender que em construções do tipo do português «amor de mãe» ou do latim amor matris, isto é, os empregos dos chamados “genitivo subjetivo” (=a mãe ama) e “genitivo objetivo” (=o filho ama a mãe), as duas línguas não apresentam manifestação linguística para tais distinções, ao que só se pode chegar por uma adequada compreensão do sentido textual mediante o concurso do saber elocutivo e do saber expressivo, além, naturalmente, do condicionamento lexical e sintático das unidades envolvidas.
Diante de diversas pautas de correção relativas a cada língua funcional, sobreleva a necessidade da conceituação da norma a que Eugenio Coseriu chamou exemplar que, diferentemente da natureza da correção, que reflete uma tradição linguística da comunidade historicamente determinada, resulta (a exemplaridade) de uma eleição de fatos linguísticos (mais no campo da morfossintaxe do que da fonologia) ditada por injunções sociais e culturais: o exemplar, portanto, não será nem “correto” nem “incorreto”, mas sim integrante de uma etiqueta sociocultural. E dela só dará conta à gramática normativa. A gramática sem adjetivos (comparada, contrastiva, etc.) de uma língua não é a gramática de toda língua, mas de uma variedade dela.
Isto está longe de significar que o professor de língua não reconheça a existência de fatos de variedades outras da competência linguística de seus alunos, para os quais não deve olhar como prejuízos ou com juízos preconceituosos. Tais diversidades devem ser aproveitadas inteligente e habilmente pelo professor como fatores que façam dos alunos poliglotas na própria língua, fatores decisivos no cultivo e extensão da competência linguística que lhes permitirá passar do conhecimento intuitivo ao conhecimento reflexivo do idioma para que eles possam estimular a criatividade linguística, como lembra Coseriu. A atitude e o empenho de preservar nos alunos a mesmice idiomática, negando-lhes o acesso à língua exemplar, sob o pretexto, aliás, distorcido, de que é uma imposição das classes dominantes e da elite, resultam de uma falsa noção de democracia que repercutirá negativamente no percurso do destino desses alunos no seio da sociedade.
Texto do autor, divulgado no mural de Facebook Língua e Tradição (em 17/10/2022).