Entusiasmado pela literatura angolana, Mário Joaquim Aires dos Reis especializou-se em literatura de Manuel Rui Monteiro. Natural da Guiné-Bissau, o crítico literário considera que a literatura angolana é das “mais ricas” dos PALOP mas critica a estagnação em que se encontra, por falta de formação e de incentivos, e teme que venha a perder a pujança inicial. Docente da Universidade de Lisboa e convidado da Katyavala Bwila, defende * que Angola deve criar políticas para melhorar o ensino.
* entrevista concedida ao jornalista Edno Pimentel, publicada no semanário luandense Nova Gazeta, do dia 3/06/2019. Manteve-se a norma ortográfica de 1945, seguida em Angola.
O que o motivou, enquanto guineense, a escolher as obras de Manuel Rui Monteiro para o seu doutoramento?
Dois motivos. Primeiro, para permitir que haja uma comunicação entre as nossas culturas. Os Países Africanos de Língua [Oficial] Portuguesa (PALOP) têm uma história comum. Depois das independências, passaram a existir afinidades culturais. Muitos angolanos que vivem na Guiné-Bissau não se sentem estrangeiros. E eu aqui também tenho de dizer quem sou para me tirarem o cunho de angolano. Segundo, pela minha ambição em conhecer outras literaturas. O que é habitual é as pessoas, estando na defensiva, trabalharem o país de origem. A Guiné-Bissau já me pertence, a minha língua materna é o crioulo da Guiné e seria preguiçoso e redundante estudar coisas que eu já conheça. E em todas as literaturas africanas de Língua Portuguesa, a angolana é a mais rica. As outras, como a da Guiné, são ainda incipientes.
Isso não o preocupa?
Preocupa-me que a geração de escritores conotados com a denúncia do jugo colonial esteja a desaparecer e não há uma outra que substitua. Em Angola, temos o caso emblemático do Ondjaki, que, nos novos escritores, é o único que se destaca. Depois temos o Agualusa, que é mais um escritor global do que angolano, e pouco mais. O horizonte é preocupante porque o número de escritores devia multiplicar-se, mas está a acontecer exactamente o contrário.
Porque estará a diminuir?
Deixou de ser atractivo criar um plano literário. Existe uma tradição das literaturas feitas em Angola, sobretudo no período da luta armada para a independência, mas este assunto de natureza circunstancial já caducou. Os tempos são outros. E a literatura angolana que se cinge nesse período histórico e cultural deixou de ter validade e os jovens que agora se afirmam na arte inclinam-se mais na música e das artes plásticas e evitam a literatura. Também tem a ver com o nível de literacia, a formação da nova geração. Para se ser um bom escritor, é necessário ter-se o domínio da Língua Portuguesa. E sabemos que a qualidade do ensino em Angola tem estado a minguar.
Porque é que diz isso?
Hoje em dia, os alunos terminam o ensino superior e não há garantias de que sabem escrever português. Muitos não sabem ler ou compreender um texto de dificuldade média. São questões preocupantes e têm reflexo a nível da nova geração de escritores. Quase não lê. E quando o faz, são obras que não levam a lado algum.
Mas há muitos jovens escritores…
Sim. Há figuras que publicam um livro de poemas e acham que já são poetas. Mas isso é de menos. O que interessa é que não têm estado a emergir, na cultura angolana contemporânea, novos talentos.
Vê algum risco?
Sim. Corre o risco de perder a pujança inicial de afirmação. Aliás, isso pode ter a ver com os interesses do nosso mundo. Somos escravos do que é material. Angola, depois do fim da guerra, enveredou muito pelo caminho do que é material. E os jovens estão atrás disso, esquecendo-se da parte espiritual. A cultura contemporânea tem muito a ver com festas, com estar em grupos. Um intelectual precisa de silêncio e de reflectir, o que é raramente compatível com festas.
O que deve ser feito?
Angola deve definir políticas e facilitar o acesso aos livros. O preço dos livros aqui é exorbitante e isso, a longo prazo, vai ter custos altos, até de integração social. Na geração da era colonial, havia algo que os integrava culturalmente. Eram pessoas com nível cultural muito alto. Agostinho Neto, Amílcar Cabral, Francisco José Terreiro eram pessoas que liam. E isso permitia que, em Lisboa, falassem a mesma língua ao mesmo nível e que competissem com os portugueses autóctones.
Esse interesse não se deve às circunstâncias?
Os momentos são feitos por nós. O nosso momento, agora, do ponto de vista intelectual, é muito pobre. É muito difícil comprar um jornal angolano e ler-se uma recensão crítica sobre uma obra. Parece que a academia não tem leitores especialistas na literatura. Mas, se ler a revista ‘Mensagem’, encontra reflexões de Agostinho Neto, que era estudante de Medicina, reflexões de Francisco José Terreiro, que era estudante de Veterinária. Tudo isso se perdeu.
Como se pode recuperar?
O Governo deve criar políticas culturais e outras que promovam a integração social no plano intelectual. Quando encontramos livros com esses preços, é um factor inibidor. Em Benguela, há uma universidade e vários institutos privados, mas é muito difícil encontrar uma livraria digna desse nome. Não é possível haver ensino superior sem livrarias nem bibliotecas. As próprias universidades têm bibliotecas que deixam qualquer pessoa boquiaberta. Mais o equívoco de que quando uma pessoa não serve deve ir para a biblioteca. Isso é um erro crasso. Ser bibliotecário é uma profissão de alta especialidade. Tudo isso requer uma atenção por parte dos ministérios da Cultura, do Ensino Superior e da Educação.
Aposta na investigação
Há um programa lançado recentemente…
O problema é que muitos desses programas se ficam pelos gabinetes. Existe bondade, mas tem de ser uma política séria e tem de se aliar o decreto com a prática. Isso significa investir.
A expansão do ensino não se traduz em investimento?
Em Angola, sempre que se fala em investir em coisas não palpáveis é complicado. Nunca se pensa que se deve associar a investigação universitária a um investimento. Investir é mais material, troca de bens materiais. O Governo tem de dotar as universidades de verdadeiros gabinetes de investigação com verbas. Portugal, por exemplo, tem a Fundação para a Ciência e a Tecnologia, cuja função é investir na investigação, criar talentos ao mais alto nível e atrair quadros de fora.
Não vê isso em Angola?
Angola tem de dar aquele salto necessário de, tendo quadros qualificados em certas áreas, criar mecanismos de atracção, mesmo que venham de fora. Agora, devido ao contexto, pode ser difícil. Mas, no tempo das ‘vacas gordas’, a política, em vez de atrair, fechava as portas. Angola tem de perder esse preconceito defensivo. Porque há muita gente que está bem colocada, cujas habilidades deixam muito a desejar. A única forma de se resolver esse problema é deixar de convidar pessoas para cargos técnicos baseando-se em lealdade partidária. Se Angola continuar a fechar-se, apesar das potencialidades, vai ficar para trás.
O quadro económico não pode justiçar o abrandamento?
Ainda assim é possível. O que é preciso é haver uma abertura política. Há muitas resistências e pessoas que querem que isso não mude, mas os novos tempos auguram mudanças.
E como vê o fim das regiões académicas?
Nem sei se chegou a haver regiões académicas. O que houve foram decretos e achava-se que isso era suficiente. Todo o processo de criação das regiões académicas começou mal.
Como devia ter começado?
Com comissões instaladoras das universidades, por exemplo. A ideia de expansão do ensino foi boa, mas o modus operandi foi um disparate.
Como assim?
Para se criar uma região académica não se pode pôr a carroça em frente dos bois. Tinha de se criar uma comissão para instalar uma universidade. É assim que se faz em toda a parte do mundo. Não basta decretar. E mais. Geralmente, os reitores não são académicos. Não há espaços adequados. Os professores não têm o perfil desejado. Assim, como é possível trabalhar com seriedade? Aliás, o actual desenho curricular de Angola não serve os interesses das universidades nem serve os interesses de Angola. Tem de se criar cooperação com as melhores universidades do mundo.
Angola não se consegue virar?
Por si só, não. É um país novo. Quando os portugueses saíram, deixaram uma universidade na fase inicial. Com a guerra, o ensino ficou para trás. Tem de reconhecer as fragilidades e apostar na cooperação. Se não conseguir qualificar os quadros, a batalha para o desenvolvimento vai ficar adiada.
E quais são as consequências?
São claras. Não existe nenhuma instituição do ensino superior no ranking das 100 melhores universidades de África. Não se faz investigação. Não há ligação com as empresas e com o meio ao redor. Os professores são aulistas. Dão fotocópias aos alunos e depois fazem perguntas de natureza conceptual. É de uma infantilidade inacreditável. E o problema de empregabilidade de quem termina o ensino superior é grande. Se não for o Estado a empregar, onde vão trabalhar? Não é em vão que as empresas privadas preferem trazer pessoas de fora, com mais custos, porque não encontram, em Angola, quadros qualificados.
É um problema só de Angola?
É um problema geral de África, mas interessa-nos falar de Angola porque é um país potencialmente rico e ninguém compreende porque está estagnado. Deve haver uma política de importação de quadros, porque há muitos angolanos altamente qualificados na diáspora. Isso cria competitividade.
Que alunos tem encontrado?
Lecciono literatura e língua portuguesa, uma das áreas mais difíceis de se trabalhar em Angola. Os alunos do secundário chegam sem a literacia mínima. Há alunos que nunca leram uma obra da literatura universal. Há alunos que não escrevem uma frase sem cometer um erro e, no superior, não conseguem fazer um comentário de um texto. Para não falar de professores que, do ponto de vista epistemológico, não estão preparados. Ensinam coisas complexas com uma inocência e ligeireza inacreditáveis.
Já se sentiu forçado a baixar ao nível dos alunos?
Quase sempre tenho de ser benevolente, senão é impossível trabalhar. A área de desenvolvimento potencial é extremamente baixa. Quem vem com grandes expectativas tem de baixar.
Angola e o Acordo Ortográfico
Como vê o português de Angola?
Nesse aspecto, Angola está a remar contra a maré. Angola, usando argumentos que não são técnicos, mas de natureza étnica, decide não sufragar a nova grafia.
Como não tem ferramenta própria, o que agora impera é a nova grafia. Porque quase tudo vem do Brasil ou de Portugal, que já aderiram ao Acordo. De facto, o Acordo já está cá. Por isso é que, na universidade, nunca corrijo um aluno que usa a nova grafia.
É a favor da nova grafia?
Não. Sou contra, porque acho que é um disparate, até no plano técnico, há várias incoerências. Se a antiga grafia já era complexa, agora então tornou-se um caos. Mas não se pode estar a remar contra a maré.
Mas não se deve ter em conta as línguas angolanas?
As bases de uma ortografia não têm nada a ver com palavras das línguas nacionais. Uma vez que o país adopta uma determinada grafia, as palavras passam a ser escritas de acordo com aquela grafia, porque está na base da ortografia. É uma convenção e não filiação etimológica.
Não se perderia a identidade?
É uma falácia. A academia deve decidir, de forma arbitrária, porque não há nenhuma diferença, do ponto de vista fonético, escrever Cuanza ou Quanza. O k, no português, só se usa em expressões estrangeiras.
Isso não pode servir para palavras de origem angolana?
Podem, desde que a academia decida e passe a ser lei. O que não se pode fazer é andar à volta dessa confabulação romanesca de que kwanza desde a sua origem se escreveu com k. Esta palavra foi escrita, pela primeira vez, por uma potência estrangeira, porque nós não escrevíamos. As nossas culturas são de tradição oral. Dizíamos kwanza, mas como é que se escrevia?
Cf. Ensino da literatura em Angola (entrevista de Manuel Ngunza a Vítor Burity da Silva) + "Norma ou desvio do português de Angola" e Angola reaprecia adesão ao Acordo Ortográfico
* entrevista concedida ao jornalista Edno Pimentel, publicada no semanário luandense Nova Gazeta, do dia 3/06/2019. Manteve-se a norma ortográfica de 1945, seguida em Angola.