“Tãoooo fofinhooo”: a conversa de bebé está presente em todo o mundo - Diversidades - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
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“Tãoooo fofinhooo”: a conversa de bebé está presente em todo o mundo
“Tãoooo fofinhooo”: a conversa de bebé
está presente em todo o mundo
“Parentês”, uma língua praticamente universal

«(...) Quando as pessoas falam com bebés modificam a voz de uma forma em que fica acusticamente mais similar à que usamos para cantar. (...)»

 

Provavelmente isto já lhe aconteceu: está numa sala com um bebé como centro das atenções e as frases dirigidas ao bebé entoam uma voz mais aguda, com as vogais bem abertas e frases repetitivas. «Oooolá, bebé!», «Tãoooo fofinhooo», «Quem é que gosta muito de ti, quem é, quem é?». Estes exemplos de conversa de bebé não são aleatórios, são frases comuns em ajuntamentos para conhecer o mais novo membro da família e recorrentes da parte de familiares e amigos. As frases unidireccionais neste tom quase cantado é uma língua em si – o “parentês”. E esta é uma língua praticamente universal.

A experiência que (quase) todos teremos nestas situações motivou mais de 40 investigadores a ir à procura de respostas: isto acontece em todo o mundo? Em zonas rurais ou urbanas, isoladas ou cosmopolitas, desde a atarefada Nova Iorque (Estados Unidos) a um pequeno povo no sudoeste da Tanzânia, a forma como falamos com os bebés é transversal.

É o tom mais agudo, um ritmo mais cadente e com mais variações, bem como vogais carregadas e prolongadas que caracterizam o parentês. E, na verdade, podemos afirmar que quase todos os adultos são fluentes nesta língua. É o que nos mostra um estudo agora publicado na revista científica Nature Human Behavior, em que foram analisadas 1615 gravações de 410 pais espalhados pelos seis continentes.

E se poderíamos depreender estas conclusões da nossa experiência pessoal, a verdade é que não sabíamos, até este trabalho, que este era um fenómeno transversal a várias sociedades. «Não afirmamos que as pessoas soam exactamente iguais em todas estas sociedades que estudámos – porque há um leque de diferenças de indivíduos, de vozes e também há imensas diferenças culturais. O que mostramos é que, para além de todas estas influências na forma como falamos, existe um viés natural que temos para usar a nossa voz desta forma quando falamos com bebés», explica Courtney Hilton, psicólogo na Universidade de Yale (Estados Unidos) e um dos líderes desta investigação.

A abrangência deste estudo mostra como esta conversa de bebé (ou baby-talk para os anglófonos) está, de certa forma, enraizada no ser humano. Num grupo de 35 pessoas do povo Hadza (no sudoeste da Tanzânia) estes registos mantêm-se, mesmo tendo a própria língua (e sem relação com outra língua conhecida) e subsistindo como caçadores-recolectores. Quando alguém fala com bebés, seja em que parte do mundo for, é provável que esteja a falar com este tom musical familiar – Hilton chama-lhe uma “impressão digital acústica”. Há cinco anos, um outro estudo também indicava esta universalidade a partir de gravações em diferentes línguas, mas sem a recolha no local que estes investigadores realizaram.

A conversa de bebé pode ser importante na aprendizagem, na nossa relação com a música e na comunicação das emoções. “Uma das coisas que conhecemos é que esta é uma forma de comunicar social e emocionalmente com os bebés. Mas isto também os ajuda a entender as palavras: como exageramos as vogais, há uma ideia de que fazemos isso porque os bebés assim aprendem os sons das palavras", diz Hilton ao Público

Em 2020, um estudo norte-americano da Universidade de Washington listava benefícios deste parentês na aprendizagem, principalmente da língua.

Ainda assim, acrescenta que há muita investigação que é necessária para consolidar estas associações entre a nossa conversa de bebé e o desenvolvimento da criança. Especialmente estudos mais abrangentes, como o que liderou, que ofereçam uma visão mais global e menos centrada nas sociedades urbanas e ocidentais.

Música para os meus ouvidos

«Uma das coisas mais engraçadas que aprendemos com isto é que quando as pessoas falam com bebés modificam a voz de uma forma em que fica acusticamente mais similar à que usamos para cantar», diz Hilton. E este estudo não se reduz a conversas. A partir deste tom musicado passamos para as canções: damos música aos bebés? “A fala e a música são ambas capazes de ter papéis lúdicos ou relaxantes”, aponta Courtney Hilton, que também pertence ao The Music Lab, um laboratório dedicado à investigação social da música na Universidade de Harvard (Estados Unidos) que conduziu este trabalho.

Com base neste preceito, além de gravarem e compararem a forma como falamos com bebés e adultos, os investigadores registaram também a forma como cantamos para bebés. Os resultados foram semelhantes: quando cantamos para bebés também optamos por um tom mais agudo e com um ritmo mais variável.

«Esta ligação entre a voz com que falamos com bebés e a forma como experienciamos música é muito interessante», destaca Hilton. «Se olharmos para a forma como os adultos sentem a música, percebemos que também a usamos da mesma forma: é uma ferramenta poderosa para comunicar emoções e tem até uma função de identidade social e de regulação das nossas próprias emoções.»

Os exemplos são também eles clássicos: quando temos um dia complicado no trabalho colocamos música para relaxar; no ginásio, apostamos em algo motivador; e a banda sonora de um jantar de amigos no fim-de-semana contará com mais animação.

Voltamos ao bê-á-bá, ou ao parentês: «Esta conversa de bebé tem uma certa musicalidade que nos ajuda a ligar ainda mais atrás, através da ideia de que existe uma relação entre a forma como interagimos com os bebés e a forma como sentimos e experienciamos a música», perspectiva.

Mas esta é uma mera hipótese sobre o papel do parentês no nosso desenvolvimento, um ramo ainda muito verde na investigação científica.

Intuição de bebé

A nossa memória enquanto bebés é inexistente – em grande parte dos casos, as primeiras memórias podem remontar aos dois anos e meio de idade. No entanto, há coisas que ficam. Uma delas podem ser reminiscências desta língua comum em todo o mundo, apontam os investigadores que conduziram este estudo.

«Queríamos compreender se as pessoas tinham intuições básicas quando ouviam este tipo de sons. Há a ideia de que, quando as pessoas usam este parentês, o bebé tem a noção de que o adulto está a comunicar com ele. E se isso é verdade, os adultos devem ter alguma intuição quando ouvem estes sons», diz.

O teste mais fácil para descobrir isto é um jogo online: ouvimos um som e dizemos se esta frase foi dita a um adulto ou a um bebé. Mais de 50 mil pessoas de quase 200 países participaram neste jogo para descobrir se ainda conseguimos distinguir a conversa de bebé da conversa normal.

Não foi perfeito, mas os participantes tinham uma taxa de sucesso surpreendentemente acima do que seria previsível. «Isto mostra que além de criarmos estes sons de bebé recorrentemente, também temos intuições e conseguimos distingui-los», precisa Hilton, destacando que embora estes resultados não provem qualquer correlação, são interessantes para abrir portas a futuros estudos sobre o desenvolvimento infantil.

«Há sociedades que poderão não usar conversa de bebé e outras usam muito menos do que nós [nas sociedades ocidentais]. Apesar de usarem menos, ou de exagerarem menos na forma como o fazem, continuam a existir provas de que o fazem e com o tom e a musicalidade característica desta conversa de bebé», conclui.

 

Cf.: Gravações de pessoas a cantar para bebés recolhidas pelos investigadores, aqui. 

Fonte
Artigo do jornalista Tiago Ramalho, transcrito, com a devida vénia, do matutino português Público, com a data de 30 de julho de 2022. Texto escrito segundo a norma ortográfica de 1945.

Sobre o autor

Jornalista português. Escreve no matutino Público.