Eram três brasileiras e um português - Diversidades - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
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Eram três brasileiras e um português
Eram três brasileiras e um português
A língua portuguesa em liberdade

« (...) Não é só o português que os brasileiros falam — musical, gracioso, sexy, humorístico, brincalhão, metediço, encantador — mas a maneira como eles vão construindo a língua à medida que falam. (...)»

 

Eu cá queria escrever sobre a sorte que tem a língua portuguesa aqui em Portugal por ter tantos brasileiros a falar a nossa língua. É mais do que uma injecção de vitalidade e de amplitude: é uma segunda vida. 

Não é só o português que os brasileiros falam — musical, gracioso, sexy, humorístico, brincalhão, metediço, encantador — mas a maneira como eles vão construindo a língua à medida que falam, como se tivessem vindo do dentista e, estando a passar a anestesia camoniana, se pusessem a explorar a língua e o interior da boca, para ver onde se consegue meter, para descobrir até aonde pode ir. 

É a língua portuguesa em liberdade, muito novinha, ainda a decidir o que quer ser. 

Mas, como se verá, é difícil para caramba escrever em português. Lembrei-me dos nadadores-salvadores brasileiros que havia na Praia Grande, que ficavam escandalizados com a maneira como os basbaques olhavam para as mulheres. Um deles estava sempre a abanar a cabeça e a protestar: «Isto no Brasil é assédio!» 

Saindo anteontem da padaria, dei com três brasileiras que iam para a escola. Iam mesmo à minha frente, de passo apressado, muito bem-dispostas — a rir-se tanto que tinham de parar para deixar escapar o riso. 

Mas como é que se podia escrever isto sem parecer assédio? Não podia dizer que fui atrás de três brasileiras ou que segui três brasileiras pela rua abaixo — apesar de ter sido isso que aconteceu. 

E eis que surge uma lição que os brasileiros nos ensinaram: só um português teria este problema. 

É o eterno problema do “parecer mal”. Um brasileiro acharia graça à possibilidade de um mal-entendido. Um sexagenário português que persegue três adolescentes brasileiras, para mais a pensar em Drummond de Andrade e em Cesariny, é bom demais para ser desperdiçado. 

Não é só a língua que falamos que agradece, mas é importantíssimo: considero cada brasileirismo que apanhei não só como uma honra, mas como uma prova de abertura e de flexibilidade.

Fonte

Crónica do escritor português Miguel Esteves Cardoso, transcrita, com a devida vénia, do jornal Público, de 19 de novembro de 2023. Texto escrito segundo a norma ortográfica de 1945.

Sobre o autor

Nasceu em Lisboa em 1955. É doutorado em Filosofia Política, pela Universidade de Manchester, Inglaterra. Desde 2009 escreve diariamente no Público e, em 2013, passou a ser autor da Porto Editora, a quem confia a obra inteira. Publicou entre outros: A causa das coisas (1986), O amor é fodido (1994), A vida inteira (1995), Explicações de Português (2001). Mais aqui.