As armadilhas da língua - Diversidades - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
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As armadilhas da língua
As armadilhas da língua
Espantoso, um falso amigo do espanhol

«(...) Apesar da sua relativa surdez, Torrente Ballester ouviu a palavra espantoso e, a meu lado, deu um salto na cadeira. José Saramago não sabia ainda que, em castelhano, a  palavra espantoso se aplicava a uma coisa horrorosa (...).»

 

Em 1990, publiquei na coleção “Letras de Espanha”, da D. Quixote, a tradução portuguesa do romance Filomeno, a mi pesar, de Gonzalo Torrente Ballester, que acabara de obter o Prémio Planeta. Don Gonzalo não era, à época, apesar do seu prestígio, um autor muito conhecido [em Portugal]: se não me engano, apenas um livro seu – O Conto da Sereia  saíra na Difel, graças ao entusiasmo militante do professor e tradutor Miguel Viqueira.

Em novembro desse ano, trouxemos Torrente Ballester a Lisboa e convidámos José Saramago para fazer a apresentação do livro. Saramago não era ainda o Saramago do Nobel, mas tinha já publicado algumas das suas obras fundamentais, como Levantado do Chão, Memorial do Convento ou O Ano da Morte de Ricardo Reis. A sua presença iria certamente animar o evento e ajudar na divulgação da obra do seu confrade espanhol. Os dois já não eram "meninos" nenhuns: Don Gonzalo tinha 80 anos e Don José ia nos 68, e não dominava ainda, como viria a acontecer depois, o castelhano. E sendo Torrente Ballester galego (nascido no mesmo Ferrol que vira nascer o Caudilho), partiu-se do princípio de que a comunicação não seria difícil se Saramago falasse em português.

Num anfiteatro lotado, feitas as apresentações iniciais, o nosso Nobel começou a intervenção com uma afirmação categórica: «Este é um romance espantoso!» Apesar da sua relativa surdez, Ballester ouviu a palavra espantoso e, a meu lado, deu um salto na cadeira. Saramago não sabia ainda que, em castelhano, a palavra se aplicava a uma coisa horrorosa, e Don Gonzalo tão-pouco conhecia o uso que dávamos ao vocábulo. Percebendo o mal-estar criado e as consequências que daí poderiam advir, expliquei-lhe, ao ouvido, o mal-entendido, o que permitiu que tudo continuasse e terminasse sem mais problemas.

Torrente Ballester viria a morrer nove anos depois, na sua Salamanca de adoção. Nessa altura já Saramago se instalara havia muito em Lanzarote e acabara de receber o Nobel. Como se pode constatar nos Cadernos de Lanzarote, os dois escritores vieram a encontrar-se por diversas vezes: em Vigo, em Santiago de Compostela, em Portimão e até em Lisboa, onde Saramago apresentou o romance A Morte do Decano, de Ballester. Talvez, durante algum desses encontros, Don Gonzalo tenha recordado aquele momento em que pensou que um escritor que tanto admirava estava a considerar o seu livro... uma coisa horrorosa.

 Cf. O que Saramago nos ensina + O legado atual de José Saramago, contra o mito do «autor difícil» + Saramago: a poesia que desfaz o cinismo

Na imagem Torrente Ballester e José Saramago. Fotografía de Xurxo Lobato.

Fonte

Crónica do editor português Manuel Alberto Valente publicada no semanário Expresso no dia 16 de julho de 2021.

Sobre o autor

 Escritor e editor português. É, atualmente,  diretor editorial da Porto Editora.