A TLEBS vai matar as nossas criancinhas. Não sabia? Vai penetrar naqueles encéfalos tenrinhos e secar-lhes os neurónios. Proteja os seus filhos. Caso contrário, ao fim de uma geração ninguém mais falará português em Portugal. Você foi avisado por Miguel Sousa Tavares, Eduardo Prado Coelho, Vasco Graça Moura, Helena Matos, Maria Alzira Seixo e muitos outros: uma conspiração de linguistas motivados pelo ódio à língua portuguesa e a raiva à literatura inventou os epicenos e os nomes contáveis, vírus de uma epidemia de TLEBS que pode vir a ser pior do que a gripe das aves ou a pneumonia asiática, juntas.
A reacção pública à TLEBS –que, no mundo real, é a Terminologia Linguística para o Ensino Básico e Secundário – foi, mais uma vez, exemplar dos debates sobre educação em Portugal. Os comentadores do costume (e algumas adições) continuam viciados em criar o pânico a qualquer gesto, com uma desconfiança crónica dos técnicos e professores, e sempre prontos a investir no sensacionalismo e na confusão, a serviço de um suposto tempo em que as coisas eram evidentes e "se aprendia". Como me dizia um amigo biólogo, repete-se aqui o fundo da discussão sobre Plutão: como toda a gente tinha aprendido que Plutão era um planeta, era forçoso que Plutão continuasse a ser um planeta para sempre, independentemente do que entretanto tivessem descoberto os astrónomos.
Do outro lado, temos uma comunidade técnica e científica assarapantada no meio do espaço público como um bicho na auto-estrada. Ironicamente, os linguistas não são capazes de comunicar com a comunidade. Mas não lamentemos demasiado os académicos, que só têm de se queixar pelas suas culpas, principalmente quando a impotência desliza para o «não falem do que não sabem«, como fez Maria Helena Mira Mateus. Os académicos têm de entender que, quando está em causa a generalização dos seus saberes, não só é natural como desejável que as pessoas acabem «falando do que não sabem». Ou falamos todos do que não sabemos, ou sucumbimos à ditadura tecnocrática – e se os especialistas querem ajudar ao debate a melhor maneira de o fazer não é exigir-lhe que termine. Além de que, se os linguistas tivessem pensado no resultado final, teriam feito bem em trabalhar menos e não mais: a TLEBS desce efectivamente a um nível minucioso que, como se viu, atrapalhou mais do que ajudou. Se eu fosse linguista, teria especial cuidado com este particular, porque já se chegou ao ponto em que Vasco Graça Moura conseguiu convencer as pessoas de que o linguista é o inimigo da língua e abomina a literatura. O que é uma especificidade portuguesa muito infeliz: nos EUA, por exemplo, basta ver a importância pública de autores como Steven Pinker e, de forma diferente, George Lakoff. A Linguística é talvez a disciplina das humanidades que mais evoluiu e que melhor diálogo tem com as ciências naturais: perguntem a António Damásio sobre os ecos entre o seu trabalho e o dos linguistas, na neurologia, nas ciências cognitivas e na inteligência artificial. A Linguística ocupa um lugar-charneira no arquipélago dos saberes, o que explica parte das linhas de fractura na discussão da TLEBS: os linguistas são hoje uma espécie bem diferente dos seus restantes colegas das faculdades de Letras.
Acabamos então demonizando uma disciplina de ponta e, a acreditar nas últimas notícias, ferindo de morte a TLEBS. E para quê? Para voltar a uma terminologia obsoleta, divergente da utilizada no maior país de língua portuguesa e que não é menos específica nem complicada do que a TLEBS? Não haverá então nada que se aproveite desta discussão?
Claro que há. Há um aspecto que me intriga e estimula: esta tensão fundamental entre os que defendem a prioridade ao estudo da língua e os que defendem a prioridade à literatura. Para uns é essencial conhecer os alicerces, os tijolos e as traves-mestras da língua; para outros, habituar-se a passear pelos palácios da literatura. Por experiência pessoal, sou sensível ao argumento de Vasco Graça Moura de que o domínio da língua vem depois do entusiasmo da leitura, como quem diz: levem-nos a visitar o mosteiro da Batalha, em vez de lhes dizerem o que é um arcobotante. Por outro lado, quem ainda não esqueceu o último grande pânico a propósito dos níveis de literacia compreende que se os estudantes desconhecerem os materiais de que é feita a língua não só nunca atingirão as alturas do mosteiro da Batalha (ou d’Os Maias), como terão dificuldades em ler um artigo de jornal ou em escrever uma carta de reclamação. Mas que devemos, então, ensinar-lhes: a engenharia, a arquitectura ou a decoração de interiores da língua portuguesa? A resposta a essa pergunta é outra pergunta: desde quando uma coisa nos obriga a prescindir da outra?
Este momento é o ideal para uma proposta salomónica. Em vez de termos apenas uma gaveta, a que se chama Língua e Literatura Portuguesa, para volta e meia assistirmos a uma nova batalha pela porção que deve caber a uma e a outra, deveríamos finalmente dar a dignidade merecida às duas matérias.
De um lado, teríamos a Literatura, não só pelo benefício que dela resulta para a língua, mas reconhecendo a centralidade das letras na cultura universal. Os clássicos da literatura em Língua Portuguesa continuariam a ser o núcleo fundamental desta disciplina, mas tampouco há razão para excluir dela alguns clássicos fundamentais em tradução – Cervantes, Shakespeare ou Tolstoi. Além disso, desobrigada do estudo linguístico aprofundado, sobraria algum espaço para iniciar experiências de escrita criativa e estimular o talento literário. Idealmente, poderia aflorar as outras artes: penso em drama, música ou cinema.
Do outro lado, a Linguagem. Mais uma vez, o eixo central seria a Língua Portuguesa, mas não nos deteríamos aí. Desde os saberes clássicos com contributos pragmáticos – a retórica, a gramática e a dialéctica – à análise de discurso, à construção de argumentos e às distinções entre fonética, morfologia e sintaxe (ou entre dialectos e idiomas, tão incompreendida), há aqui muito de fundamental para os dias de hoje.
Saber interpretar e analisar; conhecer a história dos “media” e o panorama linguístico do mundo – temas importantes e entusiasmantes de ensinar e aprender. Ajudando a combater o analfabetismo funcional e a melhorar os níveis de literacia sem se poder ser acusado de "matar" o gosto pela fruição estética ou roubar espaço aos clássicos da literatura.
Ao contrário do que se diz, não é de agora que vivemos na sociedade da comunicação. Os humanos respiram comunicação e cultura, como respiram oxigénio, e provavelmente desapareceriam sem elas. Duas disciplinas diferentes não são de mais para os desafios de um estudante médio. Por um lado, ampliar e sofisticar a sua cultura geral, pelo contacto com os melhores exemplos históricos da literatura e mesmo das restantes artes. Por outro, ganhar ferramentas de análise e construção do discurso nos seus vários níveis. Não temos de excluir uma opção pela outra – nem devemos.
In “Público” do dia 2 de Dezembro de 2006