Rui Bebiano, professor da Universidade de Coimbra e autor do texto satírico "Ciberuvas da míngua portuguesa", afirma o seguinte no final desse artigo:
«(...) O português é (...) "língua muito traiçoeira". E é-o de há muito. (...) Que o digam as centenas (...) de autores dos séculos de Quinhentos, de Seiscentos e de Setecentos, que grafavam o mesmo vocábulo de duas ou três formas numa mesma obra, hesitando constantemente nas frases. Numa altura em que já se escrevia um francês langue d´oïl, um espanhol de Castela ou inglês londrino parecidinhos mesmo com aqueles que falam hoje os senhores habitantes dessas paragens da estranja. Por isso, erigir padrões da língua é, em terras portuguesas, coisa arriscada e, provavelmente inglória. A regra mais antiga do português é a sua mobilidade (...).»
O autor pretende demonstrar que o português tem maior mobilidade e é mais traiçoeiro do que o francês, o espanhol e o inglês.
Vejamos o que observam alguns peritos.
Pilar Vázquez Cuesta (linguista espanhola) e Maria Albertina Mendes da Luz, na "Gramática da Língua Portuguesa" (Edições 70, Lisboa, 1983, pg. 226), dizem o contrário de Rui Bebiano:
«A língua portuguesa oferece, em geral, por oposição à espanhola, um carácter conservador. Não se deram nela algumas das evoluções fonéticas do castelhano e em bastantes ocasiões manteve etapas intermédias existentes também no espanhol antigo(...).»
Quanto ao inglês, Henriette Walter, em "A Aventura das Línguas do Ocidente" (Terramar, Lisboa, 1996), refere na pg. 408:
«...É impossível dar uma ideia, mesmo de forma aproximada, da diversidade lexical do inglês (...) na Grã-Bretanha...»
Pg. 412:
«...A língua inglesa... não deixou nunca de se diversificar, não sendo exactamente a mesma a língua que se fala na Austrália ou na África do Sul, no Canadá ou na Índia...»
Pg. 398 (sobre os Estados Unidos da América):
É «difícil estabelecer um mapa linguístico da nação que dê verdadeiramente conta da complexidade dos factos...»
Pg. 399:
«...No sul dos EUA, a realidade actual é muito confusa...»
Na França, depois de várias reformas ortográficas nos séculos XVIII e XIX, houve no século XX dez projectos de reforma que não foram aprovados devido à reacção popular.
Portugal, neste século, é apontado como exemplo oposto por Henriette Walter (obra citada, pg. 257). Ou seja: apesar dos protestos contra o último acordo ortográfico (que quase o inviabilizaram), o Portugal onde é «coisa arriscada (...) erigir padrões da língua» ganhou fama de país linguisticamente obediente.
Rui Bebiano pode-se ter inspirado em Carolina Michäelis de Vasconcelos ("Lições de Filologia Portuguesa", Dinalivro, Lisboa, sem data, pg. 101), quando menciona autores portugueses até ao século XVIII «(...) que grafavam o mesmo vocábulo de duas ou três formas numa mesma obra, hesitando constantemente nas frases(...)». Carolina Michäelis é, contudo, mais radical: não se limita ao século XVIII. Inclui também o início do século XX, até à primeira reforma ortográfica (datada de 1911, mas só aplicada em 1916, sem a adesão do Brasil).
Escreve esta antecessora de Rui Bebiano (no corpo docente da Universidade de Coimbra):
«Houve e há escritores que na mesma estrofe de um poema, na mesma página de uma novela nos apresentam formas híbridas e contraditórias (...)».
Com isto, só pretendo demonstrar que o autor tem toda a razão quando considera o português uma «língua muito traiçoeira», mas não tem nenhuma ao insinuar esta como língua mais traiçoeira do que as outras. A mobilidade não é apenas a «regra mais antiga» do português. É a de todas as línguas vivas.
Uma norma necessária
Ciberdúvidas, na modéstia do serviço que presta, é instrumento de «ensino». Daí, a necessidade de se regular por uma norma, no sentido que lhe dão Celso Cunha e Lindley Cintra ("Conceitos Gerais - A noção de correcto", pgs. 5 a 8 da "Nova Gramática do Português Contemporâneo", 2.ª ed., Edições João Sá da Costa, Lisboa, 1984):
Isto é, todo o nosso comportamento social está regulado por normas a que devemos obedecer, se quisermos ser aceites. O mesmo sucede com a língua, apenas com a diferença de que as suas normas, de um modo geral, são mais complexas e mais coercitivas. Por isso, e para simplificar as coisas, pode-se definir o «linguisticamente correcto» como aquilo que é exigido pela comunidade linguística a que se pertence.
A norma pode variar numa mesma comunidade linguística, seja de um ponto de vista diatópico (português de Portugal / português do Brasil / português de Angola / português de Moçambique / português da Guiné / português de Cabo Verde / português de S. Tomé e Príncipe), seja de um ponto de vista diastrático (linguagem culta / linguagem média / linguagem popular), seja, finalmente, de um ponto de vista diafásico (linguagem poética / linguagem da prosa).
Sem investigações pacientes, sem métodos descritivos aperfeiçoados, nunca se poderá determinar o que, no domínio da nossa língua ou de uma área dela, é de emprego obrigatório, o que é facultativo, o que é tolerável, o que é grosseiro, o que é inadmissível; ou, em termos radicais, o que é e o que não é «correcto».
Rui Bebiano, ao inventar «Ciberuvas da Míngua Portuguesa», prestou um serviço a Ciberdúvidas - porque o criticou, e a crítica, em terreno que presumimos fértil, é semente de ideias.
Exemplo de excelente ideia acaba de vir do jornalista Rui Ramos, que inventariou novas falas de Luanda, e não pior é a de outro jornalista, João Querido Manha, que, apoiado por Ciberdúvidas, vai instalar na Internet uma página sobre o minderico (código utilizado nas vilas de Minde e Mira de Aire).
Com jornalistas tão activos, esperamos dos linguistas algo mais do que a crítica arrogante de alguns - cujo comportamento, infelizmente, parece indiciar menos obra do que barriga.