Voltando à frase ««Lépido, filhote de Valente, um indômito de quatroanos, estava ontem deitado no pasto, sem sela, relinchando, quando foi laçado»», analisemos a expressão «sem sela».
O constituinte «sem sela» exerce, como já foi dito, uma função semelhante à dos advérbios e modificadores apositivos, e parece corresponder a um comentário por parte do locutor, adicionando informação à frase. As suas características são:
a) facultativo: com a sua omissão apenas se perde uma certa quantidade de informação, mas não gera agramaticalidade;
b) tem a mobilidade característica dos advérbios;
c) pode ser comutado por um advérbio.
d) responde à pergunta que caracteriza os complementos adverbiais.1
Foram estas as bases da minha última argumentação, todas elas devidamente exemplificadas.
Perante esta situação, a questão que se coloca é a de saber se este constituinte facultativo, é parte de um predicado nominal múltiplo («deitado no pasto, sem sela»), ou anexo predicativo2, ou se é um constituinte adverbial. Se o for, é também necessário ver se modifica o sujeito ou o predicativo do sujeito, visto que, para já, podemos afirmar que é um constituinte autónomo/ independente do verbo.
É de notar, porém, que não existe uma linha separadora de fronteiras sintá(#c)ticas, e se há, é por vezes muito ténue. Contudo, existem vários testes que nos permitem identificar constituintes. Os testes que foram feitos apontaram para a classificação do constituinte «sem sela» como um complemento circunstancial, mas é certo que poderia ser um adjunto adverbial modal3 (Ex.: «O aluno está (a escrever) sem lápis»). Acontece que o constituinte em causa («sem sela») é destacado por vírgulas, e não é possível identificar a sua origem, gerando uma ambiguidade estrutural e, consequentemente, várias análises possíveis. Dada a situação, não é possível analisar o constituinte sem estruturar frases equivalentes (procedimento corrente no estruturalismo norte-americano, na década de 40), testando as suas possíveis funções (o que fizemos também na intervenção anterior). Claro que, aplicados os testes exaustivamente, podemos identificar (dada a ambiguidade estrutural) outras relações gramaticais.
Igualmente relevante para esta discussão me parece o modo como Evanildo Bechara descreve as propriedades da preposição com:
«A língua portuguesa só atribui a com o significado de "co-presença"; o que, na língua mediante o seu sistema semântico, se procura expressar com esta preposição é que, na fórmula com+x, x está sempre presente no "estado de coisas" designado. Os significados ou sentidos contextuais, analisados pela nossa experiência de mundo e saber sobre as coisas (inclusive as coisas da língua, que constitui a nossa competência linguística) nos permitem dar um passo a mais na interpretação e depreender uma acepção secundária.
Assim, em cortar o pão com faca (...) "instrumento" utilizado para a realização desta ação.
Já em dancei com Marlit, emerge, depois, a noção da co-presença, o sentido de companhia (...).
Em estudei com prazer, (..) o "modo" como a ação foi levada a termo (...)»3
Pela minha parte, dou por terminada a minha participação na controvérsia suscitada pela análise do constituinte «sem sela» no contexto em apreço. Sem ter a veleidade de considerar um erro a classificação do referido constituinte como predicativo do sujeito, parecem-me, no entanto, legítimas outras propostas. Foi o que achei por bem aqui expor.
1 Este teste de pergunta-resposta tem sido considerado critério suficiente (Boons, Guillet, Leclère 1976; Macedo de Oliveira 1984) para distinguir os complementos verbais dos não verbais, assim como para classificar um dado constituinte adverbial como complemento de modo, de tempo, ou de lugar. Quando o N do grupo nominal preposicional, Prep N, é um nome predicativo, a combinação não é equivalente a um advérbio de modo, de tempo, ou de lugar, e por isso, não é resposta adequada a umapergunta com a forma «Como, Quando e Onde». Cf Ranchhod (1990:94)
2 Cf. Bechara (1999:428)
3 Cf. Bechara (1999:442)
Referências:
Bechara, E., 1999, Moderna Gramática do Português, R.J: Lucerna.
Cunha, Celso e Lidley Cintra, 1984. Nova Gramática do Português Contemporâneo. Lisboa: Edições Sá da Costa.
Mateus, M et al. 2003. Gramática da Lingua Portuguesa, Lisboa: Caminho
Ranchhod, E., 1990, Sintaxe dos Predicados Nominais com Estar, Lisboa: Instituto de Nacional de Investigação Científica. Centro de Linguística da Universidade de Lisboa.