O meu cão é um ser estranho de classificar. Geneticamente apto para caçar – o chamado “cão de parar” – , é pouco cão e pouco de parar. Em vez de “parar”, prefere perseguir e afugentar a caça, porque acha que, se eu o solto no campo, é para caçar para ele e não para mim. Afora isso, também tem mais de humano do que de cão – conforme já me tinha avisado o Manuel Alegre quando lhe contei que tinha um «épagnol bretton» («Cuidado, o tipo vai achar que é pessoa e que pertence à família!»). E, realmente, é verdade: tem um focinho que reflecte fielmente os seus estados de alma, os quais são puramente humanos: paixão, amor, alegria, segurança, conforto, ou ciúme, zanga, desconfiança, falta de paciência para me aturar. Insiste em ter o privilégio e a primazia na disputa dos melhores lugares dos sofás, tem o estranho hábito de me dar abraços quando me apanha a jeito e, de um modo geral, recusa-se a aceitar que haja coisas de humanos vedadas a cães como ele.
É, pois, um ser difícil de enquadrar nas categorias conhecidas. Mas, ao menos gramaticalmente, até aqui era fácil: tratava-se de um substantivo, vá lá masculino, vá lá singular. Pelo menos, seria esta a resposta que eu daria ao meu filho, estudante do secundário, se ele me pedisse para classificar gramaticalmente a palavra ‘cão’: «cão é um substantivo». E, com o conservadorismo que me caracteriza em tudo o que tenha que ver com o nosso património – o mar, a paisagem, a cultura, a língua –, preparava-me para viver até ao fim com esta segurança de saber que ‘cão’ é um substantivo e que assim seria para sempre, com a mesma certeza com que Sartre declarava que «um anticomunista é um cão e daqui não saio!».
Mas não: não sei se cão ainda é cão, mas substantivo é que já não. Um misterioso grupo de sábios linguistas (brrrr!) acaba de propor, para passar a vigorar em todas as escolas do país, que ‘cão’ já não é substantivo: é sim um «nome comum, contável, animado e não humano». E o meu – que é tudo menos comum, tem coisas que não se podem contar, é francamente pouco animado e tem a mania que é humano?
Vinha ouvindo falar sobre essa coisa estranha que responde pelo eloquente nome de TLEBS (Terminologia Linguística para o Ensino Básico e Secundário), julgando que se tratava de uma querela residual de linguistas, coisa de que costumo fugir como diabo da cruz. Certamente por ignorância, aliás, tenho uma funda desconfiança de que o objectivo final destes sábios é complicar o que é fácil, tornar oculto o que é evidente, lançar o caos onde reina a paz – talvez para fazerem prova de vida. Como explicou um deles, esta súbita investida de agora tem por fundamento o facto de já não se mexer na língua desde 1976 – o que deve ser grave para uma língua que tem para aí uns setecentos anos.
Fui, pois, forçado a prestar alguma atenção ao assunto, o que não é fácil, porque, pelo menos no meu caso, a gente não percebe sequer de que estão a falar. Quarta-feira assisti a um bocado de um debate televisivo onde dois ‘especialistas’ defendiam o TLEBS com um entusiasmo digno de quem tivesse acabado de descobrir a cura para o cancro ou o paradeiro do Santo Graal. Ela antevia um novo mundo de oportunidades onde 50 mil professores iriam ser formados no TLEBS, para depois transmitirem a nova ciência às criancinhas, as quais, por seu lado, em vez de pedirem aos pais que os ajudassem na gramática, iriam ser elas a revelarem-lhes a boa-nova em todo o seu esplendor. Ele, para além de muitas outras coisas cujo sentido não consegui entender, acrescentou esta evidência: a primeira vantagem do TLEBS era o facto de poderem estar ali a discuti-lo. Foi aí que eu comecei a estremecer. Antevi um futuro de terror em que os sábios espalhariam o vírus do TLEBS pelos professores, pelas crianças, pelas famílias, pelas repartições públicas, pelos manuais escolares e pelas doutas críticas literárias, e Portugal inteiro seria submergido por esta onda avassaladora do TLEBS, que doravante seria o tema de todas as conversas, afastando mesmo o José Veiga para a penumbra dos telejornais. Mas os dois ‘especialistas’ (nome comum, não contável, desanimado e desumano) estavam com a corda toda: recusar as óbvias vantagens do TLEBS com o fundamento de que é confuso seria, juravam eles, passar um atestado de incompetência aos professores e alunos deste país.
Mudei de canal, e que vejo eu? Uma manifestação de estudantes do secundário, que se dizia representativa do país todo e que reclamava dois direitos básicos: não terem aulas de substituição (caramba, se o professor falta, não nos tirem esse bónus!) e substituírem os exames nacionais por “avaliações contínuas” (porque é injusto, explicavam eles, avaliar um ano de trabalho em duas horas de exame). De facto, bastava ouvi-los e ler os cartazes que empunhavam para perceber como eram lógicas ambas as reivindicações: aquela jovem malta – não sei se muito, pouco ou nada representativa – não sabia falar nem escrever português. Logo ali temi pelo destino do TLEBS.
E depois fui pesquisar o que queriam ao certo fazer à minha velha gramática, companheira de tantos milhares e milhares de páginas produzidas não sei bem para quê. E declaro que descobri coisas fantásticas, sem dúvida impressionantes, todavia incompreensíveis, pelo menos sem uma acção de formação radical. Descobri que o simples artigo, o velho artigo definido, é promovido a «determinante artigo»: não percebo a vantagem, mas até aí ainda vou. O pior é quando me propõem designações como a «coerência pragmática ou funcional», o «modificador», o «designador rígido», o «anafórico», a «catáfora», a «meronímia», o «ataque da sílaba», a «coda da sílaba», o «agentivo», ou uma coisa entre todas misteriosa chamada «ordem OVS». Isto para já não falar do «género epiceno», que tem a particularidade de se poder dividir em «variantes comuns» ou «comuns de dois». Caramba, importam-se de falar português?
Artigo publicado no semanário "Expresso" de 25 Novembro 2006.