(…) Designando os naturais de Torres Vedras podemos escrever torreenses, torrienses, torrianos, torresãos, e ainda outras formas gentílicas que queiramos adoptar. Todas elas estão correctas, e, para cada uma, haverá argumentos que validam o respectivo critério de adopção.
Existem várias maneiras de constituir os gentílicos, esses adjectivos que exprimem a naturalidade. Pela derivação sufixal (o emprego mais corrente) teremos uma grande variedade de sufixos para construir o vocábulo. Dou exemplos, enho, eno, ico, ino, ejo, ão, ês, ano, ense (o mais vulgar). Existem, também, gentílicos de carácter erudito, isto é, poderíamos pegar no nosso topónimo romanizado, Turres Veteras, e construir, pela derivação sufixal, por exemplo, turresinos ou turresanos. E, como o nosso topónimo é composto, teríamos oportunidade de criar ainda outros gentílicos, grafando-se com hífen o composto e acrescentando um sufixo à escolha no segundo nome, como exercitarei em seguida, torresvedrasenses.
A análise morfológica destes vocábulos demonstra que estamos perante uma situação muito particular e complexa na já de si complexa estrutura da língua e da linguagem. E, tão assim, que os nossos prontuários ortográficos, referindo-se a estes adjectivos que exprimem a naturalidade, chegam a acrescentar: "Existe até o emprego de vocábulos sem nenhuma analogia mórfica com a denonominação das terras".
Podemos, assim, empregar torreense, que é o vocábulo utilizado por nós desde o princípio deste século. (Pelo menos verifiquei documentação com cerca de cem anos, e pode existir ainda outra muito anterior, é tudo uma questão de eu voltar a fazer investigação mais profunda). Assim, será sempre ilegítima a tentativa de alguém querer impor a sua opinião dizendo que o adjectivo correcto é torriense. E digo isto porque aceito várias alternativas de feição popular ou erudita na formação do nosso gentílico, e aceito, entre elas, torreense, porque esta corporificação gentilical, não estando espartilhada numa concepção ortodoxa de linguagem, fugindo a ela, é correcta e legítima. Correcta porque foi a componente social que a criou e estimulou. Cem anos é muito tempo, ela é a própria História.
E se alguém agora, para impor a sua opinião, disser, ou já tiver dito, que o leitor se tiver dúvidas vá aos prontuários, eu acrescentarei que, de facto, é bom que vá, para poder ler o que lá está escrito a propósito dos gentílicos "Não se pode estabelecer uma regra única e rígida porque o uso e a tradição impõem os seus direitos". (PRONTUÁRIO ORTOGRÁFICO E GUIA DA LÍNGUA PORTUGUESA, da autoria de Magnus Bergström e Neves Reis, edição revista pelo Prof. Pires de Castro).(…)
Se somos ortodoxos, mantendo um conservadorismo na análise linguística, considerando que a língua é apenas uma estrutura gramatical estática, com normas que até podem ser coercitivas, se não entendemos a língua como um fenómeno social e histórico, aí vamos alterar e escolher, certamente, o i (torriense).
Se, por outro lado, queremos fazer a análise morfológica da língua contrariando o estático, cultivando a sua dinamicidade, apoiando as modernas correntes linguísticas que descobriram nesta ciência novos valores, o principal dos quais é entender que, em matéria de língua, a sociedade é soberana por ser o elemento que a cria, então, aí, continuamos a manter como tem sido até agora, escolhendo o e (torreense).
Eu adopto este último critério porque não concebo a língua a desrespeitar a sociedade e a História. Se existe alguém que não compreende este critério, não há nada a fazer, ficou ultrapassado em relação aos modernos métodos de análise linguística. Nesse sentido será útil trazer aqui opiniões de dois grandes mestres nesta ciência, os Professores Lindley Cintra e Celso Cunha, ambos afirmando que só a partir da concepção da língua como reflexo do social se «torna possível o esclarecimento de numerosos casos de polimorfismo, pluralidade de normas, e de toda a interligação dos factores geográficos, históricos, sociais, psicológicos que actuam no complexo operar de uma língua.» E continuando a analisar a importância da componente social e o respeito que têm pela liberdade de criação desta, onde pode estar patente a variação diatónica, ou seja, a diferença que muitas vezes existe no mesmo país entre uma região e outra ou outras, reforçam: «Condicionada de forma consistente dentro de cada grupo social e parte integrante da competência linguística dos seus membros, a variação é, pois, inerente ao sistema da língua e ocorre em todos os níveis, fonético, fonológico, morfológico, sintáctico, etc. E essa multiplicidade de variações do sistema em nada prejudica as suas condições funcionais.»
Estas conclusões vêm na sequência de estudos cada vez mais profundos na área da sociolinguística, que é um ramo da linguística que estuda a língua como fenómeno social e cultural.
Esta relação língua-sociedade só nos últimos trinta anos começou a ser estudada em todo o mundo com maior preocupação e profundidade, chegando-se hoje a níveis conclusivos de grande precisão, embora já no princípio do século linguistas como Antoine Meillet chamassem a atenção para este fenómeno.(…)
Aparece agora alguém a dizer que está mal escrito, que é com i e eu pergunto: Então passa-se assim um atestado de analfabetice, de desinstrução, a tantas instituições, a tanta gente? Será que as pessoas são ignorantes, ou tenham andado tão distraídas que nunca tivessem pegado num dicionário, num prontuário ortográfico?
Obviamente que esta gente manuseou, vezes sem conta, esses compêndios. Só que, a primeira e maior preocupação das pessoas tem sido respeitar, neste particular, a nossa tradição, a nossa cultura, a nossa História. E, entendendo assim a língua, fazem-no bem, escrevem bem.
O nosso historiador, Júlio Vieira, empregou torreense. Foi um homem escrupuloso em tudo o que escrevia relacionado com a nossa história. A um passo da sua obra, sobre Torres Vedras, escreve "A Filarmónica Torreense foi organizada nos fins do segundo decénio do século XIX". Se ele quer dizer que já em tal época a Filarmónica tinha esse nome (o que para mim ainda não está claro, teria que investigar melhor e cruzar fontes de informação para chegar a essa certeza) então ainda avançaríamos mais na profundidade temporal e na subsequente consistência histórica. Já não são cem mas quase cento e setenta anos a empregar torreense.(…)
Artigo publicado no jornal "Badaladas" de Torres Vedras, que se transcreve com a devida vénia.