Ainda que o estimado consulente não seja, pelo que me é dado a entender, adepto do recurso aos «grandes mestres», parece-me incontornável, na minha opinião, fazê-lo. Assim, insisto nas reflexões de Cunha e Cintra (Nova Gramática do Português Contemporâneo): «PRONOMES RELATIVOS são assim chamados porque se referem, em regra geral, a um termo anterior — O ANTECEDENTE». Deste modo, «os PRONOMES RELATIVOS apresentam: [...] formas variáveis [o qual, a qual, os quais, as quais, cujo, cuja, cujos, cujas, quanto, quantos, quantas] e invariáveis [que, quem, onde]» (p. 342). Ainda segundo os citados gramáticos, «os PRONOMES RELATIVOS quem e onde podem ser empregados sem antecedente [...] Denominam-se, então, RELATIVOS INDEFINIDOS.» (p. 346).
Outro «grande mestre», Evanildo Bechara, por exemplo, na Moderna Gramática Portuguesa (p. 469), fala no «apagamento do antecedente do pronome relativo», dando como exemplos os enunciados «Não conheço quem chegou»; «Não sabemos qual comprou»; «Não sabemos onde comprou». Conclui Bechara que frases como as citadas são «relativas sem antecedente», sendo que todas elas se incluem no grupo das subordinadas substantivas, pelos motivos apresentados, por exemplo, no Dicionário Terminológico (DT), e já devidamente transcritos e explicitados na resposta anterior.
Finalmente, para terminar o desfile dos «grandes mestres», neste caso, «grandes mestras», Maria Helena Mira Mateus e outros (em bom rigor, «outras»), na Gramática da Língua Portuguesa, p. 655 e seguintes, insistem muito claramente na ideia de que «Existem também relativas sem antecedente expresso, as [chamadas] relativas livres [ou] orações relativas sem antecedente expresso», dando como exemplos frases já transcritas na minha resposta anterior, e outras, como: «Moro onde encontrei casa mais barata»; «Convoquei quantos estão inscritos»; Dei o subsídio a quem precisava / a quantos precisavam»; «Recebi quem tu recomendaste»; «Eu trouxe quantos me pediste». Valerá a pena ainda salientar que as referidas investigadoras fazem a seguinte salvaguarda: «Nestas orações, e por não se tratar de orações relativas com antecedente expresso, há restrições quanto ao uso dos morfemas relativos: cujo e o qual não podem ser empregues.»
Posto isto, proponho as seguintes paráfrases (em b) de alguns dos mesmos enunciados já sugeridos na resposta anterior.
(1a) «Quem tem amor, e tem calma, / tem calma... não tem amor... [...].»
(1b) «A pessoa que tem amor, e tem calma, / tem calma... não tem amor... [...].»
(2a) «Passeias onde não ando, / Andas sem eu te encontrar.»
(2b) «Passeias em locais onde não ando, / Andas sem eu te encontrar.»
(3a) «Quem conhece o Luís sabe que ele é um rapaz sensato.»
(3b) «As pessoas que conhecem o Luís sabem que ele é um rapaz sensato.»
(4a) «Quem vai ao mar perde o lugar.»
(4b) «As pessoas que vão ao mar perdem o lugar.»
(5a) «A presidenta só convida quem tem potencial.»
(5b) «A presidenta só convida as pessoas que têm potencial.»
Ora bem, de acordo com as paráfrases propostas em b), parece-me claro que, tal como refere Telmo Móia, mesmo nas chamadas orações relativas sem antecedente, existe «um antecedente nominal na estrutura, embora não realizado lexicalmente». No fundo, nestas paráfrases, eu apenas propus possíveis realizações lexicais dos respectivos antecedentes que, nas frases a), não se encontram expressos.
Por outro lado, importa dizer que, quando fazemos a substituição, tal como sugere o caro consulente, do pronome relativo pela locução pronominal indefinida, acabamos, na verdade, por estar a usar um pronome relativo. Vejamos (transcrevo aqui as sugestões do consulente):
[Quem vai ao mar] perde o lugar. / Eu: [Quem quer que vai (vá) ao mar] perde o lugar.
O Luís procura [quem o ajude na escola]. / Eu: O Luís procura [quem quer que o ajude (venha ajudá-lo)] na escola.
O Pedro pede dinheiro a [quem tiver]. / Eu: O Pedro pede dinheiro a [quem quer que tiver (tenha)].
O avô precisa de [quem cuide dele]. / Eu: O avô precisa de [quem quer que cuide dele].
Não será correcto afirmar que a expressão quem quer que, em praticamente todos os exemplos focados, pode, na verdade, ser substituída por alguém que, por exemplo (cf. Mateus e outros, op. cit., p. 676)? Deste modo, não será correcto afirmar que a própria expressão que o consulente escolheu para substituir o pronome será, também ela, composta por um pronome relativo? Isto é, o elemento que, na referida expressão, não é, na verdade, um pronome relativo, neste caso com antecedente (= «quem quer»), facilmente substituível pelos constituintes «uma pessoa» (cf. Infopédia) ou «alguém», por exemplo?
Creio, igualmente, que será importante reflectirmos sobre o seguinte: se a fórmula de substituição dos pronomes pelos constituintes «quem quer que», «seja quem for», etc., fosse assim tão linear e «mágica» (permitam-me a expressão), como procura demonstrar o consulente, deveríamos também, por maioria de razão, conseguir substituir qualquer pronome indefinido por esse mesmo tipo de expressões. Ora, não me parece que tal seja possível, a avaliar pelos exemplos que passo a transcrever:
(1) «Maria Teresa tem algo a me dizer.»
(2) «Ninguém ainda inventou o elixir da juventude.»
(3) «Alguém terá de ser responsbilizado pelo sucedido.»
(4) «Todos estavam admirados.»
Do meu ponto de vista, parece-me difícil operacionalizar, nos enunciados citados, tal processo de substituição.
Em conclusão, direi que admito que existe, como já havia referido na resposta anterior, algum hibridismo nas possibilidades de classificação do pronome quem (cf. Infopédia). No entanto, dificilmente conseguiremos descolá-lo da sua componente relativa, pois, como vimos, ele acaba sempre por ter um antecedente (expresso ou não). Daí que, como já referi anteriormente, a classificação proposta por Cunha e Cintra para este tipo de pronomes — relativos indefinidos — me pareça bastante útil e profícua, acabando por reflectir e resolver o hibridismo constatado.
Por fim, permita-me o prezado consulente que discorde da visão algo maniqueísta que revela em relação às noções aqui veiculadas de «simples» e de «complexo». Eu também defendo que, sempre que possível, devemos tratar estas coisas da linguagem da maneira mais clara que conseguirmos. Contudo, por vezes, talvez infelizmente, não se afigura exequível transmitir determinadas ideias e conceitos da forma límpida e cristalina como desejaríamos, ainda que, reitero, o tentemos fazer, pois a linguagem é o que é e, de facto, há questões que, para poderem ser transmitidas de forma séria e rigorosa, exigem um grau de análise que pode eventualmente dificultar o entendimento do raciocínio. Ora, a opção a esta solução seria escamotear os aspectos mais técnicos, digamos assim, das questões e tratá-las de forma inevitavelmente truncada, o que, do meu ponto de vista, não seria nem sério nem rigoroso, e, sobretudo, colidiria certamente com a filosofia que norteia este espaço que tem como suporte básico o debate sólido e amplo de ideias. Repare o caro consulente, por exemplo, no aspecto paradoxal do seguinte excerto das suas próprias afirmações:
«Nem uma, nem outra. Mais simples que isso.
Quem conhece o Luís sabe que ele é um rapaz sensato.
ORAÇÃO SUBORDINADA SUBSTANTIVA SUBJETIVA JUSTAPOSTA
O professor elogiou quem leu o livro.
ORAÇÃO SUBORDINADA SUBSTANTIVA OBJETIVA DIRETA JUSTAPOSTA».
Pergunto: em que medida é que, por exemplo, a expressão «Oração subordinada substantiva subjetiva justaposta» é mais «simples» do que «Oração relativa sem antecedente expresso» ou «Oração subordinada substantiva relativa»? Do meu ponto de vista, em nada. São apenas duas formas (igualmente complexas, ou igualmente simples) de analisar um determinado tipo de orações. Veja que, para alguém que entre neste espaço pela primeira vez, por exemplo, tantas dificuldades de análise levantará uma como outra. Repito: a análise linguística nem sempre é linear e, por vezes, o grau de profundidade dos problemas apresentados exige trabalho de descodificação da própria terminologia. E, infelizmente, como em tudo na vida, não há soluções milagrosas.
Cf. O pronome quem e o indefinido «seja quem for» I (Fernando Pestana); O pronome quem e o indefinido «seja quem for» III (Fernando Pestana); O pronome quem e o indefinido «seja quem for» IV (Pedro Mateus); O pronome quem, indefinido relativo (Virgílio Dias)