Toda a riqueza do conceito de cultura vem da própria origem da palavra, do latim "cultivare", cultivar. Espíritos mais práticos perguntariam: por que gastar o seu latim nestes tempos descartáveis que vivemos? Uma resposta óbvia – pelo menos para aqueles que lidam diretamente com a língua portuguesa e lutam pela sua preservação – é que ela é conhecida como «a última flor do Lácio», ou seja, foi a última ramificação do latim e, por obra e graça de uma pequena nação de desbravadores, Portugal, espalhou-se pelo mundo, fincando raízes na América do Sul (Brasil), na África (Angola, Moçambique) e na Ásia (Goa, na Índia; Macau, na China; e Timor-Leste, na Indonésia), tornando-se, entre as 6.000 línguas do mundo, aquela falada por 200 milhões de pessoas – o rico universo da lusofonia.
Nessa campanha pela preservação do nosso idioma, vários fatos recentes tiveram transcendental importância. Além do lançamento da segunda edição do Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa, a cargo da Academia Brasileira de Letras, houve o interesse político manifestado pelo então ministro da Educação Nacional da França, Claude Allègre, por uma aproximação objetiva com o mundo da francofonia, representado por 170 milhões de falantes. Num encontro em Paris, o ministro francês propôs um amplo acordo para que, somados, possamos fazer frente à avalanche cultural e lingüística da língua inglesa (500 milhões de falantes), proposta que ele repetiu depois, ainda mais enfaticamente, na Casa de Machado de Assis, no Rio.
Outro fato marcante foram as palavras do escritor José Saramago, na Academia Brasileira de Letras: «Não podemos permanecer no domínio das palavras vazias. É hora de fazer algo concreto para que livros brasileiros circulem adequadamente em Portugal e vice-versa. A criação de uma bienal, a primeira das quais no Rio de Janeiro, seria um passo decisivo para que se estabelecesse a harmonia pretendida entre os escritores irmãos».
Sendo a expressão de um Prêmio Nobel da Literatura (1998), o primeiro e único em língua portuguesa, o argumento passa a ter enorme peso específico e deve ser levado rapidamente em consideração.
Devemos estar atentos para o fato de que a língua entre nós é uma entidade viva, num processo de constante mutação
A matéria foi discutida ainda no Real Gabinete Português de Leitura, na solenidade de comemoração dos seus 162 anos. Instituição com 400 mil volumes, instalada num belíssimo edifício de estilo manuelino, no centro do Rio de Janeiro, não poderia existir melhor cenário para pensar o futuro da língua portuguesa, tema provocado pelo escritor Gomes da Costa e colegas portugueses que aqui vieram participar da Bienal do Livro de 1999. O clima de mudança, no alvorecer do novo século, facilitou a busca de linhas comuns para valorizar a língua portuguesa.
Para avaliar a importância atual da língua portuguesa, bastam dois dados concretos: ela é hoje falada por 4 por cento da população mundial, numa área de aproximadamente 8 por cento do globo terrestre. Pensando no caso do Brasil, país de dimensões continentais que detém o maior contingente de pessoas falando o português, devemos estar atentos para o fato de que a língua entre nós é uma entidade viva, num processo de constante mutação.
A explosão audiovisual promovida por novos meios de comunicação, como o cinema, o rádio e a televisão, e, mais recentemente, a revolução provocada pelos computadores e pela internet tendem a introduzir, a todo momento, palavras novas na língua e a "deletar" as antigas.
A nossa opção de "bom português" não deve mais ser regida pela noção de "certo" e "errado", mas pelos conceitos de "adequado" e "inadequado" (como enfatizou a professora Cilene Cunha).
Não podemos nunca defender a existência de um "apartheid" lingüístico, separando o falar do rico e o do pobre. Temos uma realidade plurilingüística, levando em conta basicamente que a norma culta deve ser obedecida sobretudo nos códigos escritos. A compreensão desse fato enseja uma profunda mudança no ensino do português, sabendo-se que é o povo que faz a língua. Pode-se concluir daí que a leitura liberta e nos leva a conhecer melhor o mundo, o outro e a nós mesmos. A linguagem manifesta a liberdade criadora do homem. 5441Ciberdúvidas da Língua Portuguesa 2004-10-01Sobre a entrada em vigor do novo Acordo Ortográfico (1990)Como se sabe, o Novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa foi assinado em 1990 pelos seguinte países:
República Popular de Angola
República Federativa do Brasil
República de Cabo Verde
República da Guiné-Bissau
República de Moçambique
República Portuguesa
República Democrática de São Tomé e Príncipe.
Neste documento indicava-se (artigo 2.º) que os signatários, através (sic) das instituições e órgãos competentes, tomariam as providências necessárias com vista à elaboração, até 1 de Janeiro de 1993, de um vocabulário ortográfico comum tão completo quanto desejável e tão normalizador quanto possível no que se refere às terminologias científicas e técnicas.
No artigo 3.º indicava-se também que o acordo entraria em vigor em 1994, após depositados os instrumentos de ratificação de todos os Estados junto do Governo da República Portuguesa.
Passados todos estes anos, ratificaram o acordo os parlamentos de Portugal, Brasil e Cabo Verde. Como o artigo 3.º exigia os instrumentos de ratificação de todos os membros, o acordo tem estado sem poder entrar em vigor.
Nas suas respostas em Ciberdúvidas, o signatário tem repetido várias vezes que o artigo 3.º é inibitório. Cita-se um dos períodos da sua resposta de Março de 2001:
«Na minha opinião, com as ratificações já feitas, o acordo poderia perfeitamente avançar para a entrada em vigor, pelo menos entre os países que já o ratificaram».
Ora a comunicação social notificou que na V Cimeira da CPLP, em Julho de 2004, foi acordado que o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa, assinado em 1990, poderia entrar em vigor com o referendo parlamentar só de três dos membros que o subscreveram.
Esta notícia fez com que algumas pessoas pensassem que o acordo já tinha entrado em vigor, ou que só necessitaria agora de um pequeno período prévio para adaptação.
Acontece que o signatário pediu à CPLP um esclarecimento sobre o que exactamente se passou na V Cimeira sobre o acordo de 1990. Na sua gentil resposta pode ler-se:
«O Segundo Protocolo Modificativo ao Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa, assinado pelos Governos dos 8 Estados membros da CPLP, a 25 de Julho de 2004, em São Tomé, alterou a redacção dos artigos 3 e 5 do Acordo, com o intuito de:
a) Modificar a cláusula de entrada em vigor do Acordo Ortográfico, de modo que o mesmo possa entrar em vigor já a partir do terceiro depósito de instrumento de ratificação junto da República Portuguesa;
b) Abrir o Acordo à adesão da República Democrática do Timor-Leste.
Com a assinatura do Segundo Protocolo Modificativo, portanto, o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa poderá entrar em vigor a partir do momento em que 3 Estados completarem o processo de ratificação.
É preciso atentar, contudo, que para essa nova cláusula entrar em vigor é preciso que o próprio Protocolo seja ratificado por 3 Estados membros da CPLP (i.e. seja formalmente aprovado pelos Parlamentos nacionais desses países).
Nesse sentido, assim que Brasil, Portugal e Cabo Verde ratificarem o Segundo Protocolo Modificativo, o Acordo Ortográfico entrará em vigor, mas apenas para as partes contratantes que o tenham ratificado.»
Em resumo, o acordo de 1990 ainda não entrou em vigor, pois é necessária a ratificação prévia do Segundo Protocolo, assinado em São Tomé.
Mas há ainda outras condicionantes.
É indispensável não ignorar que a entrada em vigor do acordo de 1990 deve ser precedida da publicação do acima citado vocabulário ortográfico comum (artigo 2.º). A Academia Brasileira de Letras está adiantada no estudo deste vocabulário, pois publicou uma obra com 350 000 entradas em 1998, mas a Academia das Ciências de Lisboa, com o seu dicionário de 70 000 entradas, de 2001, está ainda longe desse objectivo. Ora enquanto não houver vocabulário comum, não se poderá falar numa língua comum, e, para a univocidade, não adianta que cada país tenha o seu próprio vocabulário legalizado.
Torna se, assim, indispensável a união de esforços para que os termos de um vocabulário comum sejam aprovados pelos Estados interessados na comum língua. As diferenças ortográficas não são muitas, mas algumas tornam se significativas, atendendo à frequência (bras.: novo) com que aparecem num texto corrente. Por exemplo, entre Portugal e Brasil, avultam diferenças nas consoantes não articuladas, que podem ser eliminadas (presentemente escreve-se com a mesma pronúncia `activo´ em Portugal mas `ativo´ no Brasil); as diferenças que são insanáveis (pronuncia-se ¦conceção¦ em Portugal, mas ¦concepção¦ no Brasil, ¦tónica¦ em Portugal mas ¦tônica¦ no Brasil), impõem a necessidade de duplas grafias.
Além disso, mais condicionantes podem atrasar a entrada em vigor do acordo. Lembro: os problemas económicos dupla (dicionários e livros didácticos, que exigem tempo para preparação, talvez nunca menos de um ano lectivo) e a tradicional resistência à mudança, que, como é hábito, atrasará quanto possível.
Assim, no meu ponto de vista particular, é de prever um período ainda relativamente demorado antes que o acordo possa vigorar em Portugal, e provavelmente até demorado na elaboração do vocabulário comum.
No entanto, o facto dupla é que presentemente tudo depende já só do trabalho das academias e que deixou de haver a desculpa de falta de legalidade para o avanço. Os interessados no novo acordo ficam na expectativa dupla crítica daquilo que as academias fizerem, o que certamente será mais um incentivo para elaborarem o vocabulário comum.
O signatário não é um defensor acérrimo das soluções encontradas no novo Acordo Ortográfico. Sempre pensou que uma alteração ortográfica deve ser significativa para valer a pena todas as alterações que ela implica. Neste aspecto dupla, o projecto de 1986, salvo algumas inovações pouco sensatas, era mais relevante, pois quase eliminava os acentos gráficos e reduzia as regras do hífen ao mínimo. O acordo de 1990 deixa os acentos praticamente na mesma e pouco mexe no hífen. Mas o signatário perfilha-o porque tem a virtude de unificar a língua, o que é uma vantagem extremamente importante para finalmente a impor internacionalmente, na inegável importância de quase 200 milhões de falantes. Hoje, o estrangeiro sente-se baralhado na diferença entre os dicionários do português europeu e os do brasileiro.
Exemplos: a palavra com as mesmas acepçõesdupla: `activo´/`ativo´ aparece em posições bem distanciadas alfabeticamente nos dois dicionários, mas no novo acordo haverá só a palavra `ativo´; quanto às duplas grafias consentidas, haverá duplas entradas nos dicionários: `conceção´ e `concepção´, `tónica´ e `tônica´; etc. Assim, um texto escrito por um português será ortograficamente correcto no Brasil e vice-versa.
As entidades que comunicam simultaneamente com Portugal e com o Brasil, caso por exemplo de Ciberdúvidas, terão vantagem na aplicação do novo acordo. Presentemente em Ciberdúvidas é usada uma dupla grafia simplificada `fa(c)to´, `ó(p)timo´ para não confundir os leitores de países diferentes; ora com a ortografia unificada isso será dispensado.
Neste espírito, parece ao signatário que, embora possa ainda demorar mais algum tempo, a entrada em vigor da nova ortografia é inevitável. O presente acordo obtido na V Cimeira da CPLP é um claro sintoma da vontade política dos países das «oito pátrias» para que o Acordo Ortográfico entre em vigor mais rapidamente. Então, ninguém nos garante que até surja a hipótese de se avançar com a entrada em vigor mesmo sem o vocabulário comum e que isso aconteça mais depressa do que aquilo que agora se prevê. Com as últimas obras valiosas publicadas, não é difícil ao estudioso estabelecer com maior ou menor exa(c)tidão a nova forma de escrever.
Nesta ideia (bras.: novo), o autor deste texto começará a preparar-se para essa eventualidade e tenciona exemplificar com frequência (bras.: novo) as diferenças em relação à norma em vigor, isto com o objectivo de colaborar com os companheiros de estudo, interessados na (ou preocupados com) a mudança.
Como primeiro exemplo, mostra-se neste texto o que poderia acontecer no novo acordo (para o português europeu as diferenças surgem nos termos sublinhados, em que os parênteses significam letras que desaparecem). Repara-se que só há poucos termos diferentes (acepção e adaptação mantém se iguais no novo acordo e várias outros termos permitem dupla grafia, assinalada com a palavra dupla em índice superior), mantendo-se neste caso as grafias legais em Portugal e no Brasil. Para a escrita no Brasil, as mudanças ainda são menores, pois todos os termos sublinhados já são usuais.
Como se vê, muito pouca coisa muda. E as vantagens são óbvias para a comum língua.
in jornal "Folha de São Paulo"