« (...) Sinto orgulho em pertencer a uma comunidade de países onde (...) existe a possibilidade de conhecer a língua e a cultura dos outros e de ver as suas respeitadas.(...)»
Em 1979 fui colocada na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, na licenciatura em Línguas e Literaturas Modernas, variante de Português e Francês. As aulas só começaram em janeiro de 1980, porque ainda vivíamos num país pós-revolucionário e era normal os anos letivos começarem com atraso.
A língua francesa esteve longe de ser a minha escolha mais óbvia, mas não tinha tido acesso a aulas de Latim para poder escolher a variante de Estudos Portugueses, nem a Alemão para escolher a de Inglês e Alemão (Português e Inglês não me parecia uma boa combinação) e porque na altura não era possível licenciar-se em Espanhol ou Italiano na universidade portuguesa. Assim sendo, lá escolhi Francês. Escolhi aquele curso sobretudo por causa da literatura e nem sabia que existia uma coisa chamada linguística, cujo irresistível apelo chegou uns anos mais tarde.
Estudando Francês e tendo consciência das minhas limitações nessa língua, sobretudo quando observava as minhas colegas que tinham podido frequentar a Alliance Française, tentei por duas vezes ir para França, no verão, como fille au pair, mas em vão. À época ainda tinha apenas passaporte venezuelano e o consulado francês recusou-me o visto.
Em 1985, já depois de ter ensinado francês (hélas!) e já em vésperas da entrada de Portugal na Comunidade Económica Europeia, consegui finalmente entrar no país com nada mais do que o meu bilhete de identidade português. Mais tarde, em 1997, até ganhei uma bolsa do Governo Francês (a quem sou eternamente grata) para me poder instalar alguns meses em Lille, para preparar o meu doutoramento.
Com uma história como a minha, percebe-se que eu não poderia deixar de ser europeísta. É certo que nem sempre fui tão europeísta quanto hoje. Muitas vezes me indignei com a hipocrisia da política externa da União, com a gestão da crise financeira ou da crise dos refugiados, com a tolerância europeia para com alguns Estados membros. A nível nacional, nem sempre me orgulhou a forma como aplicámos os fundos europeus e muitas vezes observei com sarcasmo o novo-riquismo pacóvio de alguns em relação à Europa.
Nos últimos meses, porém, as minhas convicções europeístas saíram reforçadas pelo modo como a União Europeia conseguiu, apesar de tudo, unir-se para enfrentar em conjunto os desafios da pandemia de covid-19, especialmente quando penso na forma como os Estados Unidos da América a (não) enfrentaram. Sinto orgulho em pertencer a uma comunidade de países onde a proteção dos cidadãos e os serviços públicos de saúde ainda significam alguma coisa. Ah! E onde existe a possibilidade de conhecer a língua e a cultura dos outros e de ver as suas respeitadas.
Quem nunca viveu com um passaporte de um país "subdesenvolvido", "do terceiro mundo", "em desenvolvimento", como queiram, não faz a mínima ideia do que é querer ou precisar de conhecer mundo e não o poder fazer. Quem nunca viveu no Portugal "fora da Europa" não pode ter verdadeiramente consciência do que este era e de quão limitados eram os horizontes e as possibilidades dos portugueses comuns.
Ao pensar nestas coisas, é impossível não sentir a importância que tem o facto de Portugal assumir agora, de novo, a presidência rotativa da União Europeia. Oxalá tudo corra bem. Por todos nós.
Artigo de opinião da autora publicado no Diário de Notícias em 4 de janeiro de 2021.