Em resposta de 07/04/99, afirma JNH que 1. «os dois pontos a seguir ao vocativo que encima a correspondência não têm pés nem cabeça»; 2. «o emprego da vírgula nunca foi hábito entre nós»; 3. «não corrompamos o que há séculos está estabelecido».
Diz a Gramática de Cunha & Cintra (pág. 637 da edição brasileira) que «Depois do vocativo que encabeça cartas, requerimentos, ofícios, etc., costuma-se colocar DOIS PONTOS, VÍRGULA ou PONTO, havendo escritores que, no caso, dispensam qualquer pontuação.»
Pelo enunciado e atendendo à ideologia da referida gramática, creio que os autores se restringem ao uso observado nos escritores dos séculos XIX e XX. Eça, por exemplo, em uma mesma obra, «A Capital», ora põe dois pontos, ora nada põe, ora utiliza até ponto de exclamação. Como se vê, é tudo muito à vontade do freguês, justificável aliás em questões amiúde mais de etiqueta, se não de puro hábito, do que de estilo.
Ultimamente, noto na correspondência uma tendência para um uso mais generalizado da vírgula. Mas pode ser que se trate de moda passageira e/ou restrita.
Em manuais brasileiros de correspondência, a pontuação aconselhada são os dois pontos.
Quanto ao uso culto em Portugal, tenho aqui à mão o Tratado de Rebelo Gonçalves, onde se transcrevem dez cartas com comentários sobre o Acordo Ortográfico. Com excepção de duas delas, ambas do mesmo remetente (P.e Arlindo Ribeiro da Cunha, professor do Seminário de Braga e filólogo), em que ocorre a vírgula, as demais, subscritas por luminares da época (Cunha Gonçalves, Júlio Dantas, Cordeiro Ramos, Queirós Veloso, Sá Nunes, Ribeiro Couto, Augusto Moreno e Joaquim da Silveira), apresentam os tais dois pontos que segundo JNH «não têm pés nem cabeça».
Como se vê, parece que os corruptores (candidatos ao pelourinho?) do que «há séculos está estabelecido» são/foram, afinal, mais numerosos ou desvairados do que JNH parece ter imaginado.
O que «há séculos está estabelecido»? Quantos séculos? Estabelecido por quem?
Queira justificar.
Nos séculos XVI e XVII parece que o uso geral é o ponto, como se pode ver em, entre outros, Fernão de Oliveira e António Vieira («Muy manifico senhor.», «Senhor meu.»). Nesses séculos, os dois pontos, embora existindo, têm emprego inteiramente diverso do actual. Quanto ao séc. XVIII, não disponho de momento de autógrafo que me possa elucidar. O séc. XIX apresenta usos variados, como se notou acima, e o mesmo se pode dizer do presente século. Também Carolina de Michaëlis, por exemplo (cf. correspondência com Leite de Vasconcelos), usou a vírgula, e não creio que, alemã de nascimento, o tenha feito por imitação do francês.