Cresci a ouvir a fábula da cigarra e da formiga, em que a formiga era o exemplo a seguir: esforçada trabalhadora, poupada, a precaver o futuro, enquanto a cigarra se limitou a cantar, a divertir-se, acabou por morrer de fome. Depois, veio o tempo do carpe diem, fruir o presente, pois a vida é fugaz, acaba de um momento para o outro… Agora, na nova versão da fábula, fiquei a saber recentemente pelas minhas alunas que a formiga acolhe a cigarra e vivem muito felizes. Do mesmo modo, também outras histórias mudaram, como é o caso de “Os Três Porquinhos”, recolhida e registada pelos Irmãos Grimm. Numa primeira versão, os primeiros dois eram preguiçosos e construíam as casas de palha e de madeira. O lobo veio, destruiu as casas, eles morreram de susto e foram comidos. O último, mais trabalhador, construiu a casa com tijolos e ficou protegido, por isso era o único que se salvava. Quando referi esta primeira versão na aula de Literatura para a Infância, os alunos ficaram chocados. Disseram que não, que os outros porquinhos não são comidos, fogem para casa do irmão e ficam a viver com ele. Saliento a diferença na moralidade das duas versões. Primeiro: se não trabalhares, se fores preguiçoso, vais ter problemas. Depois: não te preocupes, não te esforces, pois haverá sempre alguém que te resolve os problemas. A discussão evoluiu para as diferenças geracionais, defendendo os alunos que, actualmente, ninguém teria arcaboiço para aguentar a primeira moral da história. Daria direito a depressão, acompanhamento psicológico e sabe-se lá o que mais. Aliada a esta hipersensibilidade, emerge a alienação, a desumanização provocada pelo excesso de ecrãs, pela ausência de leitura, pela dificuldade em encontrar as palavras certas e as ferramentas da comunicação, chave-mestra das relações humanas. Se a leitura, as histórias, a ficção são ensaios para a vida, onde podemos experimentar de tudo sem nos magoarmos, não haverá cada vez mais uma tendência para passar uma mensagem de facilidade que não corresponde de todo ao embate contra o muro áspero do real?
E no meio disto tudo, irei averiguar qual terá sido o novo destino do João Ratão da Carochinha. Seguramente que não morreu cozido no caldeirão (credo, que horror, que trauma!), mas terá ficado a relaxar nalgum jacuzzi bem quentinho das Caraíbas, a tomar um banho de ervas para se energizar…
N. E. – Na imagem, um desenho de Henri Louis Avelot (1873-1935) para a fábula a "A cigarra e a formiga", de Jean de La Fontaine, e extraída do livro Dix fables d'animaux, illustrations en silhouettes humoristiques aux dépens des humains (Paris, edição de Henri Laurens, 1932).
Crónica da professora universitária e escritora Dora Gago, publicada originalmente no Jornal do Algarve do dia 18 de janeiro de 2025.