« (...) No final, suspiro de alívio. Desta vez, o Capitão Gancho e os seus vídeos difamatórios nas redes sociais não venceram. (....)»
Nas minhas aulas de Literatura para a Infância, seguindo a via da intertextualidade, reescritas e revisitações, abordamos o Peter Pan, o diálogo entre a literatura e o cinema no filme intitulado À Procura da Terra do Nunca, realizado por Marc Foster em 2004.
Interrogo as alunas (o único rapaz da turma faltou nesse dia) sobre o que conhecem sobre o Peter Pan, o que recordam dele, como o conheceram. De súbito, uma delas intervém para dizer que não o considera como um herói, mas sim como um bandido, um raptor, alguém que assalta as casas de família e lhes rouba as crianças. Ou, de onde pensamos nós que vieram os meninos perdidos da Terra do Nunca? Até a Wendy e os irmãos ele rapta! O verdadeiro herói é o Capitão Gancho, que salva as crianças e as devolve aos pais. Fico surpreendida, questiono de onde veio essa versão da história completamente desconhecida para mim. Não obtenho resposta, continuando-se a salientar o facto de o Peter Pan também ser violento, desumano, pois arrancou a mão do Capitão Gancho e deu-a a um crocodilo para que a comesse! O suprassumo da malvadez – deve o pobre crocodilo sentir azia até aos dias de hoje, pensei.
Ao longo da aula, a leitura das fontes certas, a análise de excertos do filme vão resgatando a reputação do menino que não queria crescer, o símbolo da infância interminável, da rejeição do mundo adulto. Na discussão sobre o filme, afloram ideias interessantes como a importância de o professor se despojar, por vezes, da capa da realidade, entrar no reino da imaginação com as crianças, como faz a personagem de James Barrie. Discutem-se caminhos de descoberta, reinvenções de materiais didácticos, de puzzles convertidos em pirâmides, casas ou carrinhos, a galope na criatividade, na desconstrução de paradigmas e na reflexão.
Alerto para a importância dos clássicos (como referiu Italo Calvino, «Um clássico é um livro que nunca terminou de dizer aquilo que tinha para dizer»), da leitura, dos textos fidedignos, para a necessidade de pensarmos criticamente, de interpretarmos analisarmos e filtrarmos a panóplia de informações que esmagam o nosso quotidiano, muitas delas falsas, deturpadas, manipuladas, manipuladoras.
Depois disto, no final, suspiro de alívio. Desta vez, o Capitão Gancho e os seus vídeos difamatórios nas redes sociais não venceram. No entanto, a Terra da Iliteracia encontra-se em expansão, como o comprovam vários estudos, como foi o caso, muito recentemente do Relatório Global da OCDE sobre as competências dos adultos, no qual Portugal evidenciou desafios na literacia, numeracia e resolução de problemas da população adulta, classificando-se muito abaixo da média. Outro sintoma deste estado são as dificuldades enfrentadas por publicações sérias, de qualidade e informação fidedigna, como é o caso da Visão, do Jornal de Letras, do Diário de Notícias entre outras. Sim, é verdade, o Capitão Gancho anda por aí. E não, ele não quer devolver as criancinhas aos pais, mas sim sequestrá-las para que se tornem piratas como ele, na Terra da Iliteracia.
Crédito da imagem: Editora Zahar.
Crónica da autoria da professora e escritora Dora Gago, publicada originalmente no Jornal de Letras, número 1417, de 22 de janeiro a 4 de fevereiro de 2025. Texto escrito seguindo norma ortográfica de 1945.