Ao longo da semana foi o PÚBLICO dando a conhecer diversas cartas dirigidas ao director deste jornal a propósito da crónica que dediquei à Terminologia Linguística para os Ensinos Básico e Secundário (TLEBS).
Podemos discutir interminavelmente as vantagens e desvantagems da nova terminologia. Pessoalmente considero-a confusa, desadequada e prolixa. Pode objectar-se que a terminologia substituída pela TLEBS também padecia dos mesmos defeitos. Em alguns casos sim mas em grau muitíssimo menor.
Para ilustrar a falta de senso da dita TLEBS existem vários argumentos de peso e não é necessário ser especialista na questão para perceber que algo vai mal quando o processo de formação de palavras que até agora era descrito como justaposição passa a poder ser designado como palavra lexicalizada, expressão sintática lexicalizada, composto morfo-sintático subordinado, composto morfo-sintático (estrutura de reanálise) ou composto morfológico coordenado. Mas não é apenas neste quase anedotário que se esgota ou sequer se detectam as principais falhas da TLEBS.
Mesmo dum ponto de vista estritamente linguístico a TLEBS está longe de ser consensual como explica Alzira Seixo e Eduardo Prado Coelho. Mas não só. Vejam-se os alertas de Vasco Graça Moura quer para a entorse linguística que predomina no ensino do Português – e que é reforçada com a TLEBS – quer para os problemas de ordem muito prática que a adopção desta terminologia levanta nos PALOPS e no ensino das línguas estrangeiras nas escolas portuguesas. Vão os alunos dos básicos e secundários usar a nova terminologia na aula de português e a antiga terminologia na aula de inglês?
Mas a adopção da TLEBS suscita e remete para alguns dos atavismos do ensino em Portugal. Um deles é de natureza muito prática e prende-se com essa espécie de esquizofrenia entre a escola real e a escola imaginária. As reformas, os programas e boa parte das teorias sobre o ensino são feitos na e para a escola imaginária, por pessoas que há muito tempo não estão na escola real em condições reais. Por outras palavras, centenas e centenas de pessoas convidadas pelo ministério da Educação concebem reformas e programas para escolas e turmas que quase só vêem a partir dos gabinetes das faculdades, das janelas da avenida 5 de Outubro e das delegações disto e daquilo. A escola não é tanto o local onde trabalham os autores destas reformas ou os autores dos novos conteúdos programáticos. É sobretudo o local de que eles falam nos seminários e reuniões que constantemente os mantêm ocupados.
Toda esta parafernália pedagógica é posteriormente testada numas turmas especiais com professores também eles especiais. Em princípio, nesta fase as experiências correm sempre bem. Posteriormente entra-se na fase da generalização e aí, com uma frequência assombrosa que a ninguém perturba, rapidamente se conclui que a dita reforma não produziu os resultados esperados ou pior que veio agravar o que se propunha solucionar. Desiluda-se quem espere que daqui saia alguma reflexão sobre os conteúdos das ditas reformas. Antes pelo contrário surgem uns discursos indignados com a massificação do ensino.
Não consigo entender como não geram viva indignação as declarações que relacionam o insucesso escolar com a massificação do ensino. O problema do ensino não é nem pode ser o facto de hoje ser alargado a todos. A par da desautorização e desprestígio da figura do professor e da escola como instituição, o problema do ensino não é a sua massificação, é sim aquilo que se entendeu que se devia ensinar – e de cuja falta de senso a TLEBS é apenas o mais recente caso. Mas não único.
Por exemplo, para quê e a quem servem disciplinas como a Área de Projecto e a Educação Cívica? Na tal escola imaginária estas disciplinas devem ser interessantíssimas. Na escola real funcionam como uma espécie de metalinguagem da própria escola. Qualquer furo a jogar ao mata é mais útil do que a quinquagésima aula sobre a alimentação saudável ou a reciclagem do papel, insignes matérias que constituem por junto os programas destas disciplinas que já nem sei se melhores se piores do que aquelas outras de Têxteis que presumo em vias de extinção e em que se esmiuçavam matérias como os símbolos das etiquetas da roupa. Por mais bizarro que tal possa parecer o ministério da Educação pagava e talvez ainda pague a professores para que estes teorizassem (e teorizem!) sobre a diferença entre os símbolos do torcer e do não torcer as lãs!
A TLEBS vai certamente contribuir para acentuar a debandada para o ensino privado. É certo que os programas são idênticos no privado e no público mas também é certo que no ensino privado os pais se sentem com mais direito a exigir que os seus filhos aprendam a par e apesar das contingências programáticas. Não por acaso, se adaptarmos ao ensino a pergunta “Onde é que estavas no 25 de Abril?” verificamos que aquando do 25 de Abril os filhos dos ministros, deputados, élites empresariais e culturais estavam nas escolas públicas. Hoje não estão.
O estado português tem as famílias, sobretudo as de menores recursos, amarradas às escolas públicas. Não só recusa discutir a possibilidade do cheque ensino que seria entregue à escola pública ou privada escolhida pelo aluno, como sovieticamente arruma os alunos por áreas de residência e, com cada um na escola que lhe está afectada, lá se vão produzindo os relatórios que auguram amanhãs radiosos a cada nova experiência pedagógica. Entre as expressões mais significativas deste estado de coisas contam-se as declarações na primeira pessoa do plural proferidas invariavelmente por umas bem intencionadas directoras de turma, no início de cada ano escolar: “Nós vamos inciar o 6º ano...”, “Nós vamos dedicar pelo menos uma hora diária aos trabalhos de casa”...
É uma espécie de círculo vicioso em que ninguém faz o que é suposto: os professores evitam dizer que ensinam e que avaliam. Preferem falar da relação ensino-aprendizagem. Os pais e as mães confundem traumas com autoridade e é suposto não só que “façam” o ano lectivo com os filhos mas também que avaliem os professores. Quanto aos alunos, espera-se que não façam certas coisas e, terrível sinal dos tempo, não se espera que façam grandes coisas.
Nunca percebi como pretendia ou pretende o Ministério da Educação avançar com a avaliação dos professores pelos pais. Pessoalmente não quero andar a dar notas a professores mas também não estou interessada em fazer de novo, mesmo que simbolicamente, a escolaridade obrigatória.
De igual modo não pretendo discutir a competência científica de quem concebe os programas escolares, TLEBS e etiquetas da roupa incluídas. Mas não abdico do dever de discutir a utilidade e adequação desses conteúdos aos programas dos ensinos básico e secundário.
Quero sim poder escolher a escola onde coloco os meus filhos, escolha essa que tem implícita uma avaliação quer dos professores quer do modo de funcionamento dessas mesmas escolas. E sobretudo não posso aceitar que os governos imponham programas escolares com a displicência de quem afixa editais numa junta de freguesia.
in Público de 19 de Novembro de 2006.