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Quebrou-se a maldição da letra «A»! Os académicos apresentaram ao país um dicionário de «A» a «Z» - de seu nome completo Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea da Academia das Ciências de Lisboa - com 70 mil entradas, raiz etimológica e transcrição fonética das palavras, pondo termo, com o apoio da Fundação Gulbenkian e de outras instituições estatais e privadas, a uma espécie de assombração com 222 anos de idade: a de não conseguir passar da primeira letra do alfabeto, a que dedicou um tomo, no ano de 1793, reeditado, com a devida actualização, em 1976.
Pese embora a qualidade do solitário volume do sec. XVIII, a Academia foi alvo de sátiras e dichotes sem fim, por não conseguir produzir, à semelhança de entidades homólogas europeias um dicionário completo da língua portuguesa. Na viragem do século e do milénio, a Academia das Ciências de Lisboa pôs termo ao enguiço, facto que merece ser assinalado com ênfase. Quaisquer que sejam as críticas que possa suscitar quanto aos critérios gerais adoptados ou às soluções casuísticas, a circunstância de ter sido levado a bom termo um empreendimento desta dimensão justifica, desde logo, palavras de aplauso e de louvor.
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Achas ridículo, meu velho, celebrar o cometimento da equipa dirigida por João Malaca Casteleiro, professor da Faculdade de Letras de Lisboa? Talvez tenhas razão. Sobretudo, porque só possuo a autoridade que me advém - conforme costumo sublinhar em circunstâncias semelhantes - de não possuir qualquer autoridade filológica, literária ou outra que confira valor às minhas palavras que não seja o de exprimir a satisfação do cidadão comum, à espera na berma da estrada, quando verifica que o autocarro da carreira, com dois séculos de atraso, finalmente surgiu na paragem.
Prevines-me contra o risco de defender «este» dicionário, no contexto da controvérsia que se levantou à sua volta? Aí, permito-me discordar. É precisamente pela circunstância de escritores, jornalistas e outras personalidades manifestarem desacordo ou ridicularizarem o Dicionário da Academia - em nome da tradição literária, da «pureza» da língua ou de outros argumentos respeitáveis - que me apetece sublinhar o mérito do trabalho produzido, ao longo de doze anos pela equipa liderada por Malaca Casteleiro, professor da Faculdade de Letras de Lisboa.
Faço-o apenas enquanto pessoa que recorre à língua portuguesa como instrumento de trabalho. Gosto de saber que o tenho ali, na estante, a dois passos do ecrã onde escrevo estas linhas. Não é o único, nem o primeiro que tenho ao alcance de uma consulta veloz, a meio do artigo, a fim de esclarecer dúvidas ou de aprofundar o sentido deste ou daquele vocábulo. Agrada-me, sobretudo, que, enquanto outros (a começar pelo corrector ortográfico incorporado no programa de tratamento de texto do meu computador) me deixam sem resposta adequada para diversos vocábulos que, nas últimas décadas se tornaram de uso corrente, o Dicionário da Academia das Ciências correu o risco de assumir que o idioma se modificou com as mudanças sociais, culturais, técnicas ou por via do contágio com outras versões do português (desde logo, a brasileira) e de outras línguas. Se a geração das minhas tias ainda «aprendia piano e falava francês», os computadores nasceram a falar inglês e todos fomos, a partir do final da década de 80, em maior ou menor grau, influenciados pelo jargão técnico das novas tecnologias.
poeira@erudição.ip
A Academia sacudiu a poeira acumulada e não hesitou em caminhar ao encontro do português falado, procurando encontrar correspondências escritas. As soluções encontradas serão em muitos casos discutíveis, por exemplo, na incorporação dos estrangeirismos, mas afigura-se preferível a coragem da «aportuguesá-las» e padronizar o seu uso escrito e oral do que deixá-las proliferar à solta sem rei nem roque.
Perante a invasão quotidiana de novas palavras, a Academia e a equipa de Malaca Casteleiro definiram critérios e aproximaram a língua autorizada o idioma efectivamente praticado pelos portugueses. Ousaram dicionarizar neologismos, adoptar expressões técnicas, incorporar brasileirismos, africanismos e asiatismos. É com satisfação que vejo legitimadas palavras como, por exemplo, «parabenizar», importada do Brasil, para significar expressar felicitações ou dar parabéns.
Este Dicionário - talvez o primeiro editado em Portugal capaz de ombrear com o Aurélio, produzido e editado no Brasil - representa igualmente uma opção estratégica para encarar o idioma português, com espírito de abertura, num âmbito que não se circunscreve à Europa e ao «rectângulo à beira-mar plantado». Neste aspecto, não é demais assinalar o acolhimento de tantos vocábulos oriundos dos países de língua oficial portuguesa e as referências aos grandes autores brasileiros, de Machado de Assis a Cecília Meireles, e africanos, de Mia Couto, a Pepetela ou Baltazar Lopes.
abonações@contemporâneas.com
Satisfaz-me igualmente a opção - controversa, sem dúvida - de centrar as abonações linguístico-literárias em autores contemporâneos, de Garrett e Herculano a Saramago e Lobo Antunes (ou Agustina, Cardoso Pires e Virgílio Ferreira...). Num plano mais subjectivo e pessoal, apraz-me registar, enquanto tomo contacto, ao sabor do acaso ou da inspiração momentânea, com diversas entradas, que também encontro referências «fortes», no plano cultural e histórico, da minha geração.
No verbete «dica», refere-se a expressão «dar à dica» e exemplifica-se com Nuno Bragança: «Quando este tipo for torturado, se começar a dar à dica e chegar a nós, ele vai dizer que somos conhecidos um do outro» (em «Directa»). É a alusão à polícia política e à tortura sob o salazarismo. Na entrada «acontecimento»,aparece, lado a lado, com Teixeira Gomes, uma «abonação» de Eduarda Dionísio: «Cada acontecimento não era só conhecido pelos jornais, e pela rádio, porque nós próprios tínhamos estado lá» (em «Retrato de um amigo»). Eram os eventos do pós 25 de Abril...
impossível@conforto.clix.pt
A atenção concedida aos jornais, por serem lugares propícios ao acolhimento de novas palavras, é uma das atitudes assumidas, embora sem citar os nomes dos autores. Indica-se apenas «o título do jornal, revista, etc., e a data de publicação» - explica Malaca Casteleiro -, o que parece questionável, quando não está em causa o noticiário anónimo, à luz da letra e do espírito dos direitos de autor.
Na própria entrada «dicionário», recorre-se ao nosso jornal: «O dicionário, imagem ordenada do mundo, constrói-se e desenvolve-se sobre tantíssimas palavras que viveram uma vida plena» (Público, 6.2.1992). O problema é que, não sendo o nosso universo caracterizado pela ordem e coerência, o trabalho dos lexicógrafos, se não querem - e esta equipa visivelmente não foi por aí - fechar-se ao mundo, dificilmente se pode traduzir num tranquilizante modelo de rigor e equilíbrio. Por melhores dicionários que as academias e as editoras nos proporcionem, viveremos sempre na incerteza, afastados da tirania do idioma perfeito...
A frase recolhida do Público coloca, afinal, o problema do acto de dicionarizar numa sociedade em permanente mutação. Procura-se a síntese, sempre provisória e insuficiente, que ponha cobro ao nosso permanente estado de dúvida, perante uma língua mutante e camaleónica. Pretende-se ligar a tradição e a modernidade, o falado e o escrito, o clássico e o contemporâneo, a cultura e a técnica. Visa-se constituir uma totalidade homogénea que nem sempre é possível conciliar com os particularismos e as soluções casuísticas. Neste caso, a Academia mostrou que não se concebe como lugar de erudição balofa. Arregaçou as mangas e lançou nas livrarias uma obra ambiciosa que não escamoteia os problemas e ousa fazer escolhas. Pôs-se cobro à maldição do dicionário inacabado, espécie de obra de Santa Engrácia da Academia das Ciências de Lisboa. E reconheceu-se a língua portuguesa enquanto facto social e multicultural com virtualidades que ultrapassam em muito o eixo que vai do Chiado a S.Bento...
In diário português "Público" de 27 de Maio de 2001.