O manifesto eclipse da língua portuguesa nos textos e publicações científicas, o que aliás acompanha um fenómeno à escala planetária, tem sido tema de preocupação de inúmeras pessoas, de linguistas a cientistas. Recentemente, surgiu no PÚBLICO (12 de Agosto de 1999) um texto assinado pelo Prof. Aquiles Araújo de Barros em que o autor se insurgia contra a apresentação de teses de doutoramento em universidades portuguesas escritas noutra língua que não o português. O Professor conclui mesmo que a generalização dessa prática contribuirá para matar a língua portuguesa. Confesso que não consigo estar mais em desacordo com a perspectiva e as propostas avançadas.
Em primeiro lugar, não é o facto de as teses de doutoramento nas áreas das ciências exactas e naturais - que é onde o problema se tem colocado e a elas me restrinjo - serem escritas em inglês que a língua portuguesa está em perigo ou a ser secundarizada. Convenhamos que, de há muito tempo a esta parte, o inglês se tornou na língua franca da comunidade científica, apesar dos amargores que isso tem deixado a franceses e alemães. A razão é essencialmente histórica, resultado da forte dominação científica dos EUA e Reino Unido após a Segunda Guerra Mundial e tem um carácter claramente utilitário: só assim portugueses, finlandeses, chineses ou indianos conseguem comunicar entre si e constituir uma comunidade científica.
Por outro lado, não é certamente o facto de as teses serem escritas em português que estas contribuem para o crescimento da importância da nossa língua no mundo. José Saramago contribuiu indubitavelmente mais para esse desiderato do que todas as teses científicas escritas nos últimos cem anos.
Perguntemos, de outro modo, porque é que cientistas portugueses pretendem escrever teses em inglês em vez do português se vão apresentá-las numa universidade portuguesa? Por muito bem que dominem o inglês, é-lhes sempre mais fácil escrever na língua materna. Há, a meu ver, duas razões principais e uma acessória. Fazem-no porque, se querem ver o seu trabalho científico lido e conhecido na comunidade científica, se desejam que o seu trabalho possa ter alguma contribuição para o avanço do conhecimento, inevitavelmente terão que proceder à sua escrita ou tradução para inglês. Parece óbvio que, se pudessem fazê-lo logo à partida, poupavam um esforço suplementar. A outra razão principal é a de que, cada vez mais frequentemente, surgem a arguir teses de mestrado e doutoramento por universidades portuguesas cientistas de outros países. O que é um excelente sinal. Mais, em alguns casos são mesmo co-orientadores do trabalho científico. Ora esses cientistas, salvo raras excepções, não lêem português. Pelo que os candidatos terão o fastidioso trabalho extra de traduzir toda a tese para inglês. Um verdadeiro desperdício de tempo e recursos. E posso afirmar que tenho a exacta dimensão do que isso representa. A solução proposta pelo Prof. Araújo Barros, de se traduzir um resumo de umas dezenas de páginas, nem sequer merece o designativo de solução. Obviamente, que o Sr. Professor não se sentiria em condições de avaliar uma tese, se tivesse sido convidado para o fazer numa universidade sueca, por exemplo, e lhe distribuíssem um resumo em inglês de umas dezenas de páginas... Felizmente, esse problema nem se colocaria naquele país, onde todas as teses já são escritas em inglês.
Finalmente, há uma outra questão acessória, mas não menos importante. Em certos domínios científicos, como as ciências da computação, da biologia ou da economia, para citar alguns, a velocidade a que vão sendo criados novos termos é alucinante. Nós habituamo-nos a usar esses termos na língua em que foram criados, o inglês, como no passado assim foi com expressões como gestalt, imprinting, e outras. Escrever uma tese em português implica, em muitos casos, um verdadeiro trabalho linguístico de invenção de novos termos para português, de expressões que nunca foram antes empregues. Ora se eu concordo que esse trabalho deve ser feito, e eu próprio me tenho empenhado nisso, já discordo que recaia sobre uma jovem cientista o ónus dessa tarefa. Ainda por cima quando tem a grande responsabilidade de escrever a sua tese. A escrita da tese implica aliás um enorme corte comunicacional, porque até esse momento a cientista sempre usou e pensou nesses termos em inglês. Esse trabalho caberá sim aos professores universitários, aos divulgadores de ciência e à comunidade científica nacional. Neste domínio, falta comunicação à nossa comunidade científica. Não há praticamente publicações de divulgação, exceptuando o Colóquio Ciências da Fundação Gulbenkian. E os cientistas portugueses comunicam pouco entre si. Isso contribui sem dúvida para a generalização da aplicação de termos estrangeiros na nossa língua. Eu, por mim, prefiro a sigla DNA a ADN.
Se realmente queremos uma ciência com qualidade isso implica que tenhamos mais vezes cientistas estrangeiros a arguir teses em Portugal e portugueses a arguir teses no estrangeiro, implica uma generalização do uso da língua franca sem complexos de inferioridade.
Espero sinceramente que os Conselhos Científicos das Faculdades de Ciências deste país ultrapassem rapidamente essa crise de crescimento e passem a aceitar teses escritas em inglês. Isso aliás trazia outro beneficio acessório: um significativo decréscimo de comentários sobre ortografia e sintaxe que por vezes invadem as discussões de teses de Doutoramento.
Artigo publicado no jornal «Público» do dia 25 de Agosto de 1999.