Se não ratificar o Acordo Ortográfico, Angola vai ficar como que «numa ilha – perdida», considera a linguista Teresa Camacha Costa1, responsável do Departamento de Língua Portuguesa do Instituto Superior de Ciências da Educação (ISCED) de Luanda, defendendo, nesta entrevista ao jornalista Edno Pimentel, publicada no semanário Nova Gazeta do dia 23 de julho de 2015, a sua «ratificação imediata e a criação de um português angolano». Mas, ao mesmo tempo, muito crítica em relação ao seu ensino em Angola: «Só quem é formado na área tem habilitações para ensinar. Não basta falar. Por isso é que vemos muitos estudantes com tantas debilidades [no domínio do português]. Esses professores sem a formação específica mutilam os estudantes.»
O português ainda é um problema nas escolas. Porquê?
O problema está nos professores e, muito provavelmente, nos alunos. Nos alunos porque muitos deles querem apenas ser doutores mas não se interessam em saber. É a velha história da ‘doutoromania’. Frequenta-se a universidade, conclui-se a formação e graduam-se muitos analfabetos funcionais. Estão a limitar-se às salas. O estudante deve começar a pesquisa desde cedo.
Mas os professores é que devem incentivar a leitura, não?
Muitas debilidades no ensino do português nas escolas ocorrem porque os professores nem sempre são os mais indicados. Muitos deles não têm a formação em língua portuguesa.
E porque são admitidos?
Há muito negócio. Muitos estudantes queixaram-se de obstáculos e que, às vezes, mesmo tendo a formação, são encaminhados para outras áreas. Sei que, no último concurso público, havia vagas para o segundo ciclo, mas foram ocupadas por outras pessoas sem formação específica por via do negócio. Isso é que contribui para que a educação seja cada vez mais negligenciada.
Mas alguns professores têm conhecimentos de português...
Não é suficiente. Não basta falar português para ser professor de português. Só deve ensinar português quem é especialista, quem estudou português, didáctica do português. Há muita coisa na língua que só quem é formado na área tem habilitações para ensinar. Não basta falar. Por isso é que vemos muitos estudantes com debilidades. Esses professores sem a formação específica mutilam os estudantes.
Como é que se pode inverter o quadro?
Tudo cabe ao Ministério da Educação. A nós, cabe transmitir conhecimentos, formar bons professores de português. As escolas que recebem estudantes do ISCED não se têm queixado. Temos estudantes que se inscreveram para português, porque foram motivados pelos seus professores que se formaram no ISCED.
A escassez de professores não justifica que isso aconteça?
Não. Se pensássemos assim, recuaríamos à época do monopartidarismo, em que se justificava, mas agora não. Lembro-me que nos anos de 1970, quando ainda frequentava a 5.ª classe, e logo após independência, havia uma falta gritante de professores de quase todas as disciplinas. E os cubanos ensinavam quase tudo.
«Ficámos sem referência ortográfica»
[Até ao Acordo Ortográfico, havia] duas normas do português reconhecidas. Angola está no lugar em que deve estar?
Acho que Angola não tem norma da língua portuguesa...
Porquê?
Tínhamos a norma do Português Europeu (PE), que hoje já não é a mesma coisa. O português que se fala em Angola engloba o PE com traços muito fortes das nossas línguas nacionais e do Brasil. Como não ratificámos o Acordo Ortográfico, encontramo-nos no deserto. É controverso que estejamos a usar o PE que já tem uma nova grafia à qual não aderimos. Ficámos sem referência.
Diante da situação, o que deve Angola fazer?
Há muito que se devia subscrever o Acordo Ortográfico. Não se pode questionar o facto de termos situações diferentes das dos outros países. Se Moçambique – que também tem várias línguas – subscreveu, por que motivo não o fizemos? Angola é o único país que está de fora.
Não é legítimo que não ratifique?
Não, porque as nossas línguas locais não estão em perigo. E se estiverem será por outras razões. O que faz com que a língua se desenvolva é a comunidade de falantes. E só estará condenada à morte se a língua não tiver falantes.
O que pode acontecer se não ratificar?
Angola vai ficar numa ilha – perdida. A língua é um património comum que pertence a todos os falantes e leva consigo a cultura de um determinado povo. Se não ratificarmos, vamos ficar sem rumo nem direcção, não poderemos olhar para onde vamos. O mundo, hoje, é uma aldeia global e o que nos interliga é a língua. Com a assinatura do acordo ortográfico, só temos mais a ganhar do que a perder.
Angola devia criar uma norma própria?
O português em Angola já tem características próprias. É um português diferente de qualquer outro. Basta cada um de nós ‘abrir a boca’ que nos reconhecem logo como angolanos.
Mas estamos muito próximos do português europeu?
Apesar do esforço para adequá-lo ao português europeu, continuamos a ter traços muito peculiares. Várias vezes, por exemplo, antepomos os pronomes clíticos aos verbos, temos um léxico muito característico...
Assume as características no português de Angola. Numa avaliação, os professores podem não considerar isso como um erro?
Tendo em conta a norma padrão – europeia – que Angola segue, esta situação configura um desvio. Mas onde quer que estejamos, somos reconhecidos pela forma linguística como nos apresentamos.
O que falta para se criar um português angolano?
As academias devem funcionar. De algum modo, os trabalhos que dirigimos em algumas instituições, sobretudo os do ISCED, já apontam para esse sentido. Se houvesse algum patrocínio, seriam publicados. Só assim se poderia ver o que se produz, mas é muito difícil.
O que oferece o centro de língua portuguesa2 [ver peça complementar, a seguir]?
O saber, uma vez que não cabe ao centro assegurar a produção materializada das investigações. Isso cabe às editoras. Damos mesmo o produto imaterial, a pesquisa e o conhecimento.
Tem servido as necessidades de quem o procura?
Apesar da exiguidade do espaço, o centro oferece condições para a investigação. Muitos docentes que se estão a frequentar o mestrado e o doutoramento surpreendem-se com a quantidade de material sobre a língua portuguesa e áreas afins. Temos muita coisa boa. É pena que nem todos os estudantes frequentam o centro. As pessoas não têm tempo para a pesquisa.
2 Centro Uanhenga Xitu
O Centro de Língua Portuguesa é uma das principais instituições que se dedica ao estudo, investigação e apoio ao ensino do português em Angola. Foi criado em 2004, pela professora Amélia Mingas, em colaboração com o Camões Instituto da Cooperação e da Língua e da embaixada portuguesa em Angola.
Recentemente reinaugurado no Kilamba, o centro carece de uma maior infra-estrutura para poder colocar todo o seu acervo bibliográfico à disposição dos estudantes, docentes e investigadores. Possui mais de dois mil títulos, muitos dos quais armazenados ainda em caixotes devido à exiguidade de espaço.
Recebeu o nome Uanhenga Xitu (pseudónimo) em homenagem ao escritor angolano Mendes de Carvalho – autor de obras como Cultos especiais, Mestre Tamoda, Manana, Bola com feitiço, entre outras.
1 Teresa Camacha Costa é professora assistente no Instituto Superior de Ciências da Educação, em Luanda. É mestre em Metodologia do Ensino do Português, Língua Estrangeira/Língua Segunda, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, e doutoranda em Linguística da Universidade Nova de Lisboa, na especialidade de Lexicologia, Lexicografia e Terminologia.
in semanário luandense Nova Gazeta, de 22 de julho de 2015. Manteve-se a norma ortográfica anterior ao Acordo Ortográfico, seguida ainda em Angola.