Entrevista com Evanildo Bechara à jornalista Içara Bahia do vespertino A Tarde de 13 de Março de 2009, sobre o Acordo Ortográfico entrado em vigor no seu país desde o início de 2009. E onde o reputado gramático e filólogo brasileiro fala também do VOLP lançado, sob sua coordenação, pela Academia de Letras do Brasil, obra que, com mais de 360 mil entradas, faz o levantamento completo de todas as palavras da língua portuguesa, já nos moldes da nova grafia do português.
A TARDE: Professor, o que os participantes podem esperar do evento?
Evanildo Bechara: Primeiro: uma ideia do que é o acordo, das sua pretensões e das suas simplificações para o nosso sistema ortográfico. Segundo: como a Academia Brasileira de Letras, tomando por base o texto do acordo, operacionalizou o grande universo lexical que integra o Vocabulário Ortográfico da Academia num número aproximado de 360 mil a 370 mil palavras. Durante esse trabalho, nós nos defrontamos com alguns problemas. Numa leitura crítica do texto do acordo e do adendo que o acompanha, nós procuramos não somente atender ao que preceitua o acordo oficial, mas também preencher algumas lacunas de omissões normativas. Então, eu procuro mostrar ao público quais são essas omissões e como nós resolvemos esse problema no Acordo Ortográfico.
AT: E como esse problema foi resolvido?
EB: Eu vou dar um exemplo para você ter uma ideia de um tipo de discordância ou de omissão. O acordo diz que os paroxítonos que tiverem os ditongos abertos ei e oi não serão acentuados. Por exemplo, ideia e heroico. Mas o acordo se esqueceu de que há palavras paroxítonas terminadas em r que têm esses ditongos abertos e que, portanto, devem ser acentuadas, sem exceção. Por exemplo, a palavra destróier é uma palavra que tem o ditongo aberto oi. Nesse sentido, nós, sem contrariarmos a regra do Vocabulário Ortográfico, nós o complementamos, porque há palavras terminadas em r, com os ditongos abertos ei e oi de que o acordo se esqueceu. Então, as complementações são nesse sentido.
AT: A língua portuguesa é a única no mundo com duas ortografias oficiais: a do português de Portugal e a do português do Brasil. Na opinião do senhor, a atual reforma é suficiente para unificar o idioma ou existem questões a serem modificadas?
EB: Nenhuma ortografia no mundo é perfeita. As ortografias têm sempre, de todas as línguas, seus percalços, suas insuficiências. Agora, quando a diferença entre Portugal e Brasil estiver apenas no nível da grafia, aí o acordo unifica. Mas há fatos que são de língua, que não são de ortografia. Ortografia é convenção, língua é um fato. Quando se trata de fatos da língua, então a ortografia variará não só na comparação Portugal e Brasil, mas também dentro do próprio Portugal e dentro do próprio Brasil. O acordo é somente para a realidade escrita e não para a realidade pronunciada.
AT: Então, a proposta não é unificar o idioma, mas tentar a unificação...
EB: Das palavras. Essas serão grafadas uniformemente. Não precisa ir a Portugal. No Brasil mesmo você diz arimética ou aritmética. Você diz acessível e accessível. Aí não é uma diferença de grafia, é uma diferença de grafia resultante de uma diferença de língua. Muita gente faz confusão. Muita gente diz que o brasileiro diz fato e o português diz facto. Ora, isso não é uma diferença de grafia, é uma diferença de língua.
AT: Certa vez, o senhor declarou que a reforma ortográfica nunca é para a geração que a faz, mas para os jovens que estão em fase de aprendizado. O senhor não acha que as mudanças podem tornar complexo o aprendizado dos jovens em fase de alfabetização, por exemplo?
EB: Os que já aprenderam a escrever é claro que terão um período de adaptação. Agora, aqueles que estão começando a escrever vão ser beneficiados porque o acordo simplifica muito. O acordo torna a ortografia portuguesa mais simples nos seus grandes problemas como, por exemplo, no emprego do hífen. Antigamente você estudava o emprego do hífen e tinha muitas dúvidas. Hoje, se você ler as regras, você não terá dúvidas.
AT: Mas o hífen ainda deixa muita gente de cabelo em pé, professor!
EB: Porque não estudou, porque não leu as regras. O hífen era um quebra-cabeça da língua, mas, agora, ele não é mais. É claro que a reforma poderia ir mais longe na simplificação do hífen, mas seria uma reforma muito drástica. Eu não estava na Academia nessa época, em 1990, eu só entrei na Academia em 2001. Não fiz parte dessa reforma, mas digo a você o seguinte: ela simplificou consideravelmente. O acordo trouxe para o emprego do hífen uma onda de coerência que vai facilitar a vida de quem escreve em língua portuguesa.
AT: Qual a ligação que o senhor tem com a atual reforma ortográfica?
EB A minha ligação como filólogo da Academia Brasileira de Letras foi preparar a quinta edição do Vocabulário ortográfico da língua portuguesa, de acordo com a reforma de 1990.
AT: O senhor alterou algo no Acordo Ortográfico de 1990?
EB: Não, eu não mudei. A regra primeira que adotamos é não alterar o acordo. Agora, nós não podemos obedecer ao acordo quando ele é incoerente. Por exemplo: você escreve coabitar junto, que é um co mais o verbo habitar, que começa com h. E por que é que você vai escrever co-herdar com h e separado por hífen? Se é a mesma coisa, é o mesmo prefixo, e a palavra seguinte começa com h? Não tem sentido isso. O próprio acordo diz que com o co haverá sempre a ligação com o elemento seguinte.
AT: Dentre os oito países lusófonos que adotaram o novo acordo, dois deles, Cabo Verde e Guiné-Bissau, têm índice de alfabetização abaixo de 50%, de acordo com informação publicada no caderno especial de A TARDE sobre a reforma no último sábado...
EB: O Brasil não fica muito longe disso, não. No Brasil, você tem aparentemente alfabetizados. É gente que lê, mas não entende o que leu, então é como se não tivesse lido.
AT: Mas, nesse mesmo índice publicado, o Brasil está com 88,8% de alfabetizados.
EB: Isso é uma propaganda enganosa. O analfabetismo em português, no Brasil, se divide em dois grupos: aqueles que leem e aqueles que não leem. Aqueles que leem estão divididos em aqueles que leram e aqueles que leram e não entenderam. É a mesma coisa que não saber. Só pronunciar as palavras não significa que você tem a compreensão da língua. Se fosse assim, o papagaio era alfabetizado.
AT: Na opinião do senhor, o acordo vai afetar as pessoas, ou melhor, vai contribuir de alguma forma com o índice de alfabetização nesses países?
EB: Não, porque aí não é um problema de língua, é um problema de política educacional. É um problema que não é da Academia, mas do Ministério da Educação e do Ministério da Cultura. A ortografia não melhora a alfabetização de ninguém. Você não faz uma reforma ortográfica para melhorar o índice de alfabetismo. Ajuda, mas não é. O problema de um país ter 50% de analfabetos não é um problema de língua, é um problema de política educacional. Alguma coisa está errada na educação do país. Não é a Academia que vai solucionar, é o Ministério da Educação, o Ministério da Cultura.
AT: Na opinião do senhor, qual é o papel da imprensa no que diz respeito à divulgação e propagação das novas regras ?
EB: A imprensa está exercendo um papel fundamental, como nunca houve na história deste país. A imprensa falada, a imprensa escrita e televisionada. A imprensa está dando um impulso tão grande que não precisa chegarmos a 2012 para que todo mundo esteja escrevendo na nova ortografia.
AT: O senhor citou o Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa (VOLP) diversas vezes, mas ele ainda não foi publicado. Por quê?
EB: Eu disse que o Vocabulário tem quase mil páginas e o decreto do presidente da República, efetivando o acordo, se deu no dia 29 de setembro, quando ele foi à Academia assinar o decreto. Você há de convir que, embora a gente já estivesse trabalhando nele, a gente não poderia lançá-lo sem o decreto. Enquanto o presidente não decretasse, aquele acordo estava apenas no limbo. Era apenas uma proposta. Como decreto, passou de proposta a realidade...
AT: A data de publicação já está definida?
EB: Ele vai sair no dia 19 de março, na ABL. O presidente da Academia, Cícero Sandroni, quer levá-lo antes para entregar em mãos ao presidente da República, respondendo a gentileza de ele ter ido à Academia assinar o decreto. Ele quer ir a Brasília no dia 18, um dia antes, entregar em mãos ao presidente, ao ministro da Educação, ao ministro da Cultura, ao ministro das Relações Exteriores, ao presidente do Senado e ao presidente da Câmara. Haverá um lançamento oficial em Brasília, no dia 18, e um lançamento acadêmico na Academia no dia 19.
in A Tarde de 13 de março de 2009