« (...) A questão portuguesa se resume às suas alucinações. Aguardemos que, fazendo vénia à identidade nacional, os cruzados lusos passem a usar a ortografia afonsina. (...)»
Entre os argumentos contrários à nova ortografia da língua portuguesa e aos atos de direito internacional que a estabelecem, alguns afirmam-se de natureza jurídica. Passaremos a analisá-los, tanto quanto é possível entendê-los como argumentos jurídicos. Explicarei: as afirmações que pretendem considerar a nova ortografia juridicamente inválida porque atentaria contra «a marca identitária do povo», ou porque seria «indiferente aos argumentos da diversidade, da etimologia, da sonoridade e da estética da língua reiteradamente brandidos pelos seus opositores», podem servir para alindar poemas a enviar a jogos florais de aldeia, mas dificilmente serão consideradas argumentos jurídicos. O mesmo se dirá da ideia criativa segundo a qual a ortografia não poder ser modificada porque tal seria rever a Constituição da República, revisão impossível pois que atentaria contra os limites materiais impostos ao legislador constitucional, nomeadamente «o princípio da identidade nacional e cultural e o núcleo essencial de vários direitos, liberdade e garantias».
Estranhas, peregrinas teorias de juristas com alma de poetas, só idênticas às de um conhecido poeta, jurista de formação, que, no meio da artilharia de petardos que diariamente desfere contra a nova ortografia, apontou ontem como atentado à memória do padre António Vieira a edição das obras do pensador que aplica a nova ortografia. Por que não aplicar a ortografia do tempo em que o Padre António Vieira escreveu? E os sonetos de Shakespeare, traduzidos para português pelo conhecido poeta, seguem a norma ortográfica do século XVI? E o Hino Nacional, deverá o poema sempre ser transcrito com recurso à ortografia de 1910 para que não se ofenda a identidade nacional? Será violar a Constituição reproduzir o artigo 112.° da lei fundamental escrevendo “Atos normativos” em vez de “Actos normativos”? Pergunte-se ao Tribunal Constitucional. Quanto a violações da Constituição, temos pano para mangas: peça-se urgência na resposta; que seja dada antes do termo do período de transição previsto até à plena aplicação do AO.
Será o bom senso incompatível com certas interpretações jurídicas e certas liberdades poéticas? Deixemos tais poéticas a juristas-poetas e a poetas-juristas e vejamos três razões que o direito material consideraria contrárias à integração da nova ortografia na ordem jurídica portuguesa.
1. O Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa, assinado em Lisboa em 16 de dezembro de 1990 (AO), nunca entrou em vigor por falta de ratificação de todos os Estados signatários. O Segundo Protocolo Modificativo ao AO, assinado em São Tomé e Príncipe em 25 de julho de 2004, que altera o artigo 3.° da redação inicial, no sentido de prever que o AO “entrará em vigor com o terceiro depósito de instrumento de ratificação junto da República Portuguesa”, seria contrário o direito internacional e, por isso, ferido de nulidade. Em princípio, um ato de direito internacional entra em vigor logo que o consentimento a ficar vinculado (através da ratificação) seja manifestado por todos os Estados que tenham participado na respetiva negociação (cfr. art. 24.º, n.º 2 da Convenção de Viena Sobre o Direito dos Tratados, de 1969). Ora, o n.º 1 da mesma disposição admite a possibilidade de as partes convirem numa solução diferente, designadamente a entrada em vigor do ato de direito internacional em causa no momento em que se atinja um determinado número de ratificações. Foi o que aconteceu com o Segundo Protocolo, feito e assinado por todas as partes contratantes do AO e que admitiram a respetiva entrada em vigor logo que três delas ratificassem. O objeto dos dois atos, o AO e o Segundo Protocolo, é o mesmo, os signatários os mesmo, a ratificação ficou aberta a todos. O princípio da boa-fé que rege as relações internacionais foi respeitado. O AO entraria em vigor logo que três Estados ratificassem, e entraria em vigor apenas nesses três Estados. A ratificação ficaria aberta a todos: e três outros já ratificaram.
O AO está em vigor na ordem jurídica portuguesa. Assinale-se que, na nossa ordem jurídica, ocorreu recentemente a ratificação e entrada em vigor de um tratado idêntico: o Tratado Orçamental europeu, assinado por 25 Estados membros da União Europeia, que completa os tratados da União, aberto à adesão e ratificação de todos, e que entrou em vigor em 1 de janeiro último, depois de ratificado, como prevê o respetivo articulado, apenas por 12 dos signatários.
2. O Vocabulário Ortográfico Comum (VOC) seria “condição essencial” para a entrada em vigor do AO e/ou para a sua aplicação. Na medida em que o VOC não existe, o AO não estaria em vigorou, ou, pelo menos, não seria aplicável. Nada na formulação do artigo 2.° do AO, na sua versão inicial, ou, sobretudo, na redação que lhe foi dada pelo Primeiro Protocolo Modificativo, de 17 de julho de 1998, permite concluir nesse sentido: «Artigo 2.º Os Estados signatários tomarão, através das instituições e órgãos competentes, as providências necessárias com vista à elaboração de um vocabulário ortográfico comum da língua portuguesa, tão completo quanto desejável e tão normalizador quanto possível, no que se refere às terminologias científicas e técnicas.”
O VOC é «desejável» e, por isso, as autoridades dos países membros da Comunidade de Países de Língua Portuguesa fazem o necessário para que o VOC esteja disponível antes do termo dos períodos de transição previstos em cada Estado. Porém, se se entende por “condição essencial” uma condição prévia da existência do VOC à entrada em vigor ou à aplicação do AO, essa condição pura e simplesmente não existe, nem no Acordo nem nos Protocolos modificativos.
3. «O Acordo Ortográfico é tão mal feito que nem o Brasil o aceita...» Em março de 2008, o Acordo Ortográfico foi aprovado pelo Governo português e ratificado pelo Presidente da República, sendo estipulada uma moratória de seis anos para a sua integral aplicação. Este período de transição termina em 13 de maio de 2015, passando então o Acordo Ortográfico a vigorar em Portugal na sua plenitude. Até lá, coexistem as duas ortografias, a antiga e a nova. No Brasil, esse período de transição, que diz respeito à aplicação e não à vigência, foi recentemente prorrogado para terminar a 31 de dezembro de 2015, de modo a que, nos dois Estados, o termo dos respetivos períodos de transição sejam próximos. «A iniciativa servirá para harmonizar o processo da reforma com Portugal, que escolheu 2015 para finalização da entrada em vigor», afirmou a senadora Ana Amélia Lemos, que propôs o projeto de prorrogação da data-limite de transição. Foi isso e só isso que aconteceu no Brasil.
Tal facto em nada afeta a vigência do AO no Brasil. Jornais, editoras e até serviços públicos do Brasil aplicam já plenamente a nova ortografia. Mais, bem mais, do que em Portugal. Uma “revolta” contra o AO de um serviço ou fundação pública é impensável no Brasil (ao contrário do que se passa impunemente entre nós). A substituição dos manuais escolares brasileiros encontra-se completa. Autores, jornalistas e editores aplicam sem dramas a nova ortografia. Haverá adversários, mas não se passa o que dizem os nossos profetas: «O Acordo Ortográfico é tão mal feito que nem o Brasil o aceita...» Pasme-se! Ainda que isso incomode os adversários portugueses do AO, que tomam os desejos por realidade, alterando e deturpando factos, o tempo não corre, no Brasil, a favor da denúncia, mas sim da plena aplicação do AO. Tal como em Portugal, apesar da cruzada descabelada dos adversários do AO, para quem a língua se resume à convenção ortográfica, e a questão portuguesa se resume às suas alucinações. Aguardemos que, fazendo vénia à identidade nacional, os cruzados lusos passem a usar a ortografia afonsina. O país ficará assim plenamente soberano e resgatado de todos os males.
Lisboa, 4 de abril de 2013
Documento apresentado pelo jurista Fernando Guerra ao Grupo de Trabalho para Acompanhamento da Aplicação do Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa, da Comissão de Educação, Ciência e Cultura da Assembleia da República Portuguesa, em 4 de abril de 2013.