Uma resposta de Vasco Graça Moura a Vital Moreira, sobre a obrigatoriedade legal de aplicação do Acordo Ortográfico.
No Público de 5.1.10, Vital Moreira não tem razão. Mesmo dando de barato que o Acordo Ortográfico (AO) se tenha tornado norma legal obrigatória nos Estados que já o ratificaram (o que é altamente discutível e já demonstrei por mais de uma vez a impossibilidade de se entender assim), não se segue daí que se encontrem reunidas as condições jurídicas para as suas bases serem aplicadas.
Se o AO se tornou norma obrigatória, há certos aspectos que é impossível arredar:
O AO deve entrar em vigor ao mesmo tempo em todos os Estados membros da CPLP que o subscreveram. Esse é o seu espírito incontornável e isso resulta com evidência da conjugação dos seus art.os 3.º e 4.º, independentemente das datas aí indicadas. Aliás, se o AO visava acabar com a divergência das grafias, só podia ser assim... Mas há Estados que ainda não o ratificaram, pelo que é obrigatório não o aplicar enquanto o não fizerem.
O segundo protocolo modificativo, ao querer vincular todos os Estados signatários à ratificação por apenas três, não tem o efeito de alterar este estado de coisas. Pelo contrário: na impagável obtusidade conceptual que revela, essa tentativa de impor o diktat de três países a nada menos de sete aponta exactamente ao mesmo objectivo: fazer com que todos acatem e façam aplicar o AO a partir do mesmo momento...
Este segundo protocolo não é um acordo entre apenas três Estados, como houve quem sustentasse para extrair a conclusão viciada de que, sendo assim, ele se aplicava logo àqueles que já o tivessem ratificado. É um acordo entre sete e carece da ratificação de todos os sete.
Aliás, "reitera-se" no mesmo segundo protocolo que o AO é "um dos fundamentos da CPLP". Sim, caro leitor, o risonho fundamento da CPLP não é a língua, é o Acordo em vez dela!!! Houve um dromedário que se lembrou de escrever isso e os outros participantes foram a reboque… e instituíram a CPAO (Comunidade dos Países do Acordo Ortográfico)!
Vital Moreira também não pode omitir a necessidade, a que me referi desenvolvidamente no meu artigo anterior aqui no DN, de ser elaborado um vocabulário ortográfico comum previamente à aplicação do AO.
"Comum", isto é, com intervenção de instituições e organismos designados por todos os países signatários.
Esse vocabulário não existe, logo, mesmo que o AO fosse já obrigatório, obrigatório seria também protelar a sua aplicação por falta desse pressuposto, como tal expressamente reconhecido pelo Governo português ao subscrever a declaração da cidade da Praia de 20.07.09...
A ortografia legalmente vigente é pois aquela em que o Público, o Diário de Notícias e tantos outros jornais são impressos e circulam. Terrível infracção à responsabilidade social e cultural da imprensa seria esta começar a adoptar um chorrilho de asneiras que, ainda por cima, ainda não é legalmente aplicável. Para asneira, já bastam a surdez aflitiva e a cegueira confrangedora dos políticos...
Menos exacto é também, salvo no plano estritamente formal, que a "revisão ortográfica do Português" (singular terminologia!) não tenha sido um acordo a dois. Foi mesmo um cozinhado de espertezas saloias entre Portugal e o Brasil. Na substância, nunca foi um acordo a sete.
Em 1990, os representantes dos outros países de língua portuguesa limitaram-se a assinar de cruz e nem sequer viram consagradas quaisquer regras específicas para a grafia de vocábulos das línguas dos seus países que tenham sido incorporados no português...
É falso que a reforma ortográfica institua "uma norma tanto quanto possível única para a escrita do português". Com facultatividades não há normas únicas. António Emiliano já demonstrou que, com o AO, há palavras que poderão ser grafadas entre de 4 a 32 maneiras diferentes, à vontade do freguês... E nenhuma das restantes objecções levantadas ao Acordo, da questão das pronúncias de referência à das facultatividades, da questão da disparidade e incoerência de critérios à da não contemplação da grafia de vocábulos africanos ou à das regras de hifenização, entre muitas outras, teve, até hoje, uma resposta séria...
Por tudo isto, bem andam os órgãos da imprensa escrita que não enveredaram pela adopção da abortografia em perspectiva. Afinal estão a cumprir a lei!
in Diário de Notícias, de 13 de Janeiro de 2010