« (...) Quem está contra o Acordo Ortográfico, este ou qualquer outro, estará até ao fim dos seus dias. É um direito respeitável (tal como o de Fernando Pessoa, que, no seu tempo, rejeitou passar a escrever filosofia, em vez de "philosophia"…). Ainda não se percebeu é que o Acordo Ortográfico, ratificado e promulgado já por seis dos oito países da CPLP, é uma inevitabilidade. (...)»
Em editorial da passada sexta-feira, 30/12/2009, sobre as razões de o "Público" rejeitar o Acordo Ortográfico, entre os vários argumentos a seu favor considerados "utópicos", quem o escreveu destaca um "particularmente incompreensível". Este: "O de que o português, sem o acordo, terá não duas ortografias oficiais, mas oito, e que tal não pode acontecer numa língua que se pretende universal." A frase é uma transcrição deturpada de uma declaração minha, citada no trabalho assinado pela jornalista Alexandra Prado Coelho, sobre a aplicação do Acordo Ortográfico em Portugal, desse mesmo dia. O que eu disse, e reafirmo, faz a sua diferença — ou seja, que, sem um acordo, o português arrisca-se a ter não duas ortografias oficiais, mas oito. Longe de mim entrar nessa utopia de fazer compreender o que não se quer perceber, de todo. No entanto, como se invocou o recorrente caso do inglês, conviria pôr aqui alguns pontos nos ii.
1 – Nenhuma língua actual, aspirando a estatuto universal e com pretensões a idioma de trabalho nas instâncias internacionais (a começar na ONU), acolhe duas ortografias oficiais. O inglês tem uma, e só uma, ortografia oficial, fixada para todos, repito, todos os países anglófonos. E fixou-a ainda antes do século XX, pelas razões políticas, históricas e culturais mais do que consabidas. É este o equívoco – para não lhe chamar outra coisa - de quem escreveu o editorial do "Público" e, afinal, de quantos insistem nesta tecla da mais primária oposição ao Acordo Ortográfico.
2 – A língua portuguesa está fixada em duas normas ortográficas: a do português do Brasil e a do português europeu – cada uma com o seu vocabulário e dicionários específicos, com termos que são legais só no respectivo país. Nada disto acontece com o inglês. Nele só há uma norma ortográfica, que, nos seus dicionários estruturantes, vai consagrando e validando, em todo o espaço anglófono, a dupla grafia numa série de palavras escritas diferentemente em Inglaterra, nos EUA ou na Austrália, por exemplo. E o mesmo se passa com o espanhol ou com o francês, cujos dicionários incluem todas as variantes da hispanofonia e da francofonia, respectivamente.
3 – Não é, pois, a existência das duplas grafias que anula a necessidade de um mesmo e único tronco ortográfico para os oito países de fala comum portuguesa. E é precisamente por isso que a situação do português nada tem que ver com a do inglês. Nenhuma ONU, nenhuma UNESCO, nem nenhum leitorado no Japão, na China ou no Uruguai se debate com o problema da língua portuguesa: qual, afinal, a ortografia (oficial, repito) adoptada – a de Portugal, ou a do Brasil? Nada tem que ver com o inglês, nem com espanhol, nem com o francês, nem com o italiano, nem com o alemão – isto para nos circunscrevermos, apenas, à Europa.
4 – Este é um problema acrescido com a emergência dos demais países de língua oficial portuguesa, pós-independências. Qualquer deles pôde seguir a ortografia que muito bem entendeu, não sendo porém aceite essa grafia nos demais países da lusofonia. Por exemplo, Angola, onde se passou a usar o k e o w, nomeadamente nos antropónimos e nos topónimos – à revelia das ainda em vigor regras ortográficas da reforma de 1945. E se Portugal e o Brasil fixaram normas diferenciadas na sua ortografia oficial, porque não hão-de seguir o mesmo rumo os países africanos e Timor? Com que consequências para a projecção da nossa língua comum, internacionalmente? E teríamos, então, uma língua comum, ou, antes, várias línguas cada vez mais diferenciadas entre si? E, neste contexto, o português de Portugal não correria o risco de se transformar numa espécie de arcaísmo decorativo da lusofonia?
5 – Quem está contra o Acordo Ortográfico, este ou qualquer outro, estará até ao fim dos seus dias. É um direito respeitável (tal como o de Fernando Pessoa, que, no seu tempo, rejeitou passar a escrever filosofia, em vez de "philosophia"…). Ainda não se percebeu é que o Acordo Ortográfico, ratificado e promulgado já por seis dos oito países da CPLP, é uma inevitabilidade. Ainda bem — para bem, e orgulho, da minha língua, que há muito extravasou este nosso rectangulozinho de 10 milhões de falantes, catapultando-a para língua verdadeiramente comum de mais de 200 milhões de pessoas. E cuja locomotiva deixou há muito de ser Portugal.
6 – A existência de uma língua verdadeiramente comum pressupõe que as várias variantes sejam legalizadas para toda a lusofonia, o que exigiu um acordo. Para que essas variantes fossem reduzidas ao mínimo indispensável foram necessárias cedências a uma grafia comum em Portugal (ex.: consoantes mudas) e no Brasil (ex.: acentos ortográficos vários), o que exigiu também um acordo.
7 – Ainda bem – digo eu, que até preferia um Acordo Ortográfico mais ousado, nomeadamente na simplificação das regras do uso do hífen. E que a sua aplicação, no meu país, fosse bem mais criteriosa e não tanto ao sabor de interesses comerciais sem regulação nenhuma. Mas, para isso, era preciso que, em Portugal, a língua fosse tratada como é em Espanha ou no Brasil: uma questão estratégica de Estado, esteja quem estiver no poder.
Artigo inserto na edição do jornal Público de 4 de Janeiro de 2010.