(…) «A ortografia não é decretada? Então e o que aconteceu em 1911, com a primeira reforma que estabeleceu o que não havia até então de regras claras na ortografia do português? E em 1945 e, depois, em 1973, com supressão do acento nas palavras terminadas em -mente? Não foram as academias portuguesa e brasileira chamadas a esse trabalho de grande complexidade, posteriormente postas em vigor por decreto? (….)»
Fará sentido pôr em causa o Acordo Ortográfico (AO), dez anos depois de ele estar em vigor, de os alunos terem terminado dois ciclos de ensino e não conhecerem outra ortografia, de os livros serem publicados com a grafia atual e de aqueles que não quiseram aprender terem preferido reformar-se, porque aprender dá trabalho?
A Língua Portuguesa não é um património exclusivo de Portugal. Trata-se da língua oficial de oito países, que assinaram o Acordo Ortográfico: Angola, Brasil, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique, Portugal, São Tomé e Príncipe e Timor-Leste. Desses oito países, cinco ratificaram o AO: Brasil em 2004, Portugal em 2008, Cabo Verde em 2006, São Tomé e Príncipe em 2006, Guiné Bissau em 2009, e Timor-Leste em 2009. Os outros que ainda não o fizeram, na generalidade, por questões económicas, excetuando-se Angola, que reclama uma melhor regulação da utilização das letras k, w e y, tendo em conta a especificidade das suas línguas nacionais, de origem banta.
E onde, senão no âmbito multilateral da gestão da língua comum, se pode e deve dirimir essas e todas as outras sugestões, o Instituto Internacional da Língua Portuguesa (IILP)? E não foi neste mesmo âmbito que foi possível concretizar, pela primeira vez desde as suas independências, os vocabulários nacionais dos PALOP (à exceção, ainda, de Angola) e de Timor-Leste, com as normas do AO?
Até ao final do século XXI seremos 350 milhões de pessoas a falar português em quatro continentes. Tem algum sentido haver ainda a pretensão de acantonar a língua ao retângulo europeu, e em mais nenhum outro país?
Outra questão: a ortografia não é decretada? Então e o que aconteceu em 1911, com a primeira reforma que estabeleceu o que não havia até então de regras claras na ortografia do português? E em 1945 e, depois, em 1973, com supressão do acento nas palavras terminadas em -mente? Não foram as academias portuguesa e brasileira chamadas a esse trabalho de grande complexidade, posteriormente postas em vigor por decreto?
E, em todas essas situações, não houve sempre setores arreigados à norma da sua escolaridade geracional?
Basta lembrar os casos emblemáticos de Fernando Pessoa («Nada me pesaria que invadissem ou tomassem Portugal, desde que não me incommodassem pessoalmente, Mas odeio, com odio verdadeiro, com o unico odio que sinto, não quem escreve mal portuguez, não quem não sabe syntaxe, não quem escreve em orthographia simplificada, mas a pagina mal escripta, como pessoa propria, a syntaxe errada, como gente em que se bata, a orthographia sem ipsilon, como escarro directo que me enoja independentemente de quem o cuspisse.»). Ou de Teixeira de Pascoaes («Na palavra abysmo, é a forma do y que lhe dá profundidade, escuridão, mysterio... Escrevel-a com i latino é fechar a boca do abysmo, é transformal-o numa superficie banal»).
E quando os nossos pais, ao contrário do que tinham aprendido na escola, passaram a ter de escrever, sem acento, “comboio”, “corte”, “sede”, “enjoo” ou “voo”? E o que foi da confusão com as mais díspares regras do uso do hífen?
Que justificação lógica haverá para retroceder numa grafia utilizada pela generalidade da comunicação social, pelas grandes empresas, públicas e privadas, em todos os organismos do Estado, nas autarquias, no ensino, nos manuais escolares, nos livros publicados nos últimos 10 anos?
E como é possível argumentar que só em Portugal vigora oficialmente as novas regras introduzidas pelo Acordo Ortográfico de 1990, quando o Brasil o tem integralmente aplicado desde 2009 e Cabo Verde desde 2015?
Como professora há quase três décadas admito que também me custou aprender de novo. Mais: tive de aprender para ensinar. E acaso é por causa do Acordo Ortográfico que tão mal se escreve e se fala no espaço público, a começar nos media tradicionais, com erros primários na utilização do verbo ‘haver’, na pronominalização ou na concordância do sujeito com o predicado (já para não falarmos da calamidade das redes sociais)?
Desdramatizemos! O Acordo Ortográfico é uma realidade e nunca mais na vida conseguirei explicar a um aluno que deverá colocar um ‘p’ na palavra ‘ótimo’! Acreditem! Já experimentei!
Cf. Parlamento rejeita desvinculação de Portugal do Acordo Ortográfico
Artigo publicado no Jornal de Notícias de 21 de maio de 2019, em versão mais reduzida da que fica aqui em linha.