« (...) Basta ir aos programas eleitorais. No do PS, a palavra ação consta, nesta exacta forma, 187 vezes, batendo todos os outros partidos. A AD também tem ação, embora muito menos: 28 vezes. O Livre tem 27, a Iniciativa Liberal, 25, o BE ,18, o PAN ,15 e até o PCP tem 3, embora concorram com 27 escritas como acção . (...).»
Acordaram o bicho. Estava ele posto em sossego pela costumeira inércia nacional (não como a linda Inês, que teve pior sorte), quando José Pacheco Pereira o acordou. E logo para falar da São, esparramada em cartazes de fundo verde, ao lado do Pedro. Não é Pedro e Inês, é Pedro e a São, que é mais moderno. Esta «A São», que é como, mais dia, menos dia, se pronunciará ação, forma moderníssima de escrever a velha acção – de acto, de actividade, de tudo o que age ou mexe – espalhou-se por toda a parte, ainda que não cantando, como fez Luís Vaz de Camões.
Basta ir aos programas eleitorais. No do PS, a palavra ação consta, nesta exacta forma, 187 vezes, batendo todos os outros partidos. A AD também tem ação, embora muito menos: 28 vezes. O Livre tem 27, a Iniciativa Liberal, 25, o BE ,18, o PAN ,15 e até o PCP tem 3, embora concorram com 27 escritas como acção, já que o PCP, tirando vários deslizes, não apresenta o seu programa com o Acordo Ortográfico de 1990, mas sim com o de 1945. O mesmo faz o Chega, ainda que com menos acção (dez vezes) e sem nenhuma ação.
Mas voltando ao bicho. Quando se lhe expõe a cauda, por sinal pouco limpa, vêm à superfície os assanhamentos do costume, sem grande novidade. E isso é de novo visível nos quase 100 comentários suscitados pelo artigo de Pacheco Pereira. Há criaturas que falam na língua como «construção social em constante devir» (quando o que está em aqui em causa é a escrita, que se reflecte na oralidade), outras acham que são «as mudanças que a realidade impõe». Esgrime-se de novo o argumento «fonética versus etimologia», atiram-se à cara dos resistentes ao acordo (este, o de 90) as escritas de Eça, de Camilo, de Camões, até de D. Dinis, a par do recurso já estafado e caricato à escripta de Pessoa, à lagryma de Pascoaes, à vetusta pharmacia de avós e bisavós, à lucta republicana, tudo isto para provar que, se no passado se escreveu assim, hoje escreve-se assado e acabou-se. Esquecem tais criaturas que o problema é, na verdade, outro.
Porém, paranóicos (aqui o acordo manda escrever paranoicos, o que na fala portuguesa dá, como se sabe paranôicos, fechando-se instintivamente a vogal), não descansaram até darem à luz um acordo que iria fazer essa “unificação”. Fez? Não. Nem fará jamais. O invocado abate de consoantes na escrita portuguesa não teve qualquer utilidade na aproximação da escrita, que continua e continuará diferente, sem que nenhum acordo lhe trave o caminho. Pior: criaram-se em Portugal mais palavras diferentes das que se mantêm no Brasil do que se uniformizaram.
É o resultado da ignorância. Como na fábula da Raposa («estão verdes, não prestam»): não sei, não me meto. Para não errar. Ou, neste triste caso, para continuarem teimosamente a errar. Pena é que a factura seja paga pela Língua Portuguesa, seja em que variedade for. A ela voltaremos.
Artigo do jornalista português Nuno Pacheco, transcrito, com a devida vénia, do jornal Público do dia 22 de fevereiro de 2024. Escrito de acordo com a ortografia de 1945.