Há duas semanas, neste mesmo espaço, era assim que eu terminava o meu artigo a propósito do novo Dicionário da Academia : "O que me custa a entender é que um dicionário que levou mais de dois séculos para ser parido – não tenha resistido à tentação de, num fechar de olhos, apressadamente, como quem não quer a coisa, impor aos cidadãos formas de palavras que não sabemos se algum dia virão a ser aceites pelo organismo vivo que se chama Língua Portuguesa – a qual, se assim o entender, se marimbará para qualquer dicionário que lhe pretenda impor normas apressadas e não baseadas em usos consolidados". E prometia eu : "É disso que falarei aqui, de hoje a quinze dias". Nesse mesmo dia, na sua coluna do Expresso, o meu amigo Francisco Belard dizia mais ou menos o mesmo, só que com muito mais graça e para um público muito mais vasto – o que fez com que me apetecesse meter a viola no saco e calar-me.
Encontro-me agora numa posição bastante desconfortável : primeiro porque, como cronista, tenho que cumprir o prometido e voltar ao assunto ; e depois porque, como filólogo e como professor de História da Língua Portuguesa, tenho algumas críticas a fazer a este dicionário, sobretudo por causa dos critérios nele utilizados para fixar as grafias supostamente portuguesas das muitas palavras de origem estrangeira que pretende institucionalizar – apesar de ser desagradável criticar em público o trabalho dos nossos colegas. Vou portanto ficar-me pelo meio termo e ater-me à sisudez de uns tantos exemplos levemente comentados, esperando do leitor que interprete estas minhas observações não como ressabiamento de quem não foi visto nem achado na matéria, mas como uma brincadeira da qual não virá qualquer mal ao mundo. Até porque convenhamos numa coisa : para se criticar fundadamente um dicionário com mais de três mil e oitocentas páginas, como é o caso, seria necessário que se fosse capaz de fazer um outro com pelo menos tantas outras páginas – capacidade essa com que os fados, claramente, não me bafejaram. E para não cansar muito o leitor, vou pegar numa série de palavras que, de tanto repetidas, já estão decoradas e interiorizadas, transcrevendo-as numa grafia que eu há meia dúzia de meses atribuiria a alguma brincadeira e que agora vejo integrarem o fundo lexical da nossa querida língua portuguesa : elas são coisas como "estoque" (do inglês stock), "snobe" (de snob), "stande" (de stand), "stique" (de stick) e "stresse" (de stress).
Aqui, como bons gramáticos tradicionais, os autores do Dicionário tiveram a saudável preocupação de, para poupar tempo e trabalho ao leitor, lhe fornecerem as excepções ao mesmo tempo que iam ditando as regras : no pressuposto de que já ninguém pronuncia o e- inicial em palavras como "está", "estrada" ou "escola" (que de facto pronunciamos xtá, xtrada, ou xcola, ou seja, com um grupo de consoantes no início), o Dicionário resolveu aportuguesar a grafia de algumas palavras de origem inglesa, conservando-lhe o grupo de consoantes iniciais existentes no original – deste modo inventando os acima citados "snobe", "stande", "stique" e "stresse", e trazendo à cabeça, como excepção, um inacreditável "estoque" que, para além de pretender significar o mesmo que já significa a palavra portuguesa "provisão", vem criar mais um caso de homografia e de homofonia com "estoque", uma espécie de espada de ponta e lâmina estreita...
Mas, fazendo lembrar guerreiros sempre dispostos a enfrentar de peito descoberto os golpes dos estoques, os mesmos autores decidiram acrescentar um -e no final de palavras que em inglês terminam em consoante, na doce ilusão de que os portugueses ainda pronunciam coisas destas : por acaso, alguém sabe onde deixou os -e de "nove", "acontece" ou "doce" (que pronunciamos nóv, acontéss ou dôss)? Ora, se não pronunciamos aqueles apêndices gráficos, por que razão haveremos nós de os acrescentar a palavras que os não têm e deles não precisam? Ou seja, quem daqui por diante vai pronunciar stresse ou stande, quando a língua lhe foge –com toda a razão– para a verdade que todos os dias encontra em stress ou em stand?
Não acredito que, para além dos autores deste Dicionário, algum falante do português vá acreditar que daqui por diante vamos começar todos a macaquear os falantes do inglês. De facto, nós, os falantes do português, temos uma história, e temos muito mais com que nos preocupar. Por exemplo, com o facto de apenas 35% dos jovens portugueses de hoje concluírem o ensino secundário (contra 90% dos dinamarqueses ou 58% dos espanhóis), e apenas 19% dos adultos portugueses dos 40 aos 49 anos terem concluído o ensino secundário (contra 82% dos dinamarqueses ou 33% dos espanhóis). E quanto a nós –vergonha das vergonhas!–, deveríamos preocupar-nos, desesperadamente, com o facto de 86% dos açorianos com idades compreendidas entre os 25 e os 59 anos não terem conseguido ir além do ensino primário, quando na Caríntia de Heider essa percentagem não vai além dos 18%...
Com ou sem dicionário, com ou sem fascismo, é este o retrato da gente!
Publicado no jornal "Açoriano Oriental"