Em Portugal, no final de mais uma época, a euforia dos campeões do futebol e, em mesmo grau, o desgosto dos derrotados levam o registo jornalístico a ativar, de maneira mais ou menos metafórica, palavras e expressões de vários campos áreas lexicais, entre eles o da espiritualidade.
Um exemplo será, por exemplo, o que se escreveu no Record, de 25/05/2025 (p. 9),1 acerca da final da Taça de Portugal. No texto em causa, lê-se que o jogador dinamarquês Hjulmand já conhece o «misticismo do Estádio Nacional [do Jamor]» (ver imagem ao lado). A expressão entende-se e interpreta-se como referência ao fervor (quase) religioso sentido pelos adeptos que assistem a um jogo nesse estádio. Se a intenção for sugerir o complexo de emoções, sentimentos e até crenças que os adeptos associam a esse recinto, conferindo-lhe uma aura como que sagrada ou até mágica (e magia é outra palavra recorrente no discurso sobre futebol), o vocábulo mística pode ser tão ou mais ajustado.
Na verdade, falando de misticismo, pensa-se sobretudo numa atividade subjetiva ou no conteúdo de palavras e imagens que apelam a essa experiência interna: associado a pessoas e a conteúdos, por exemplo, evoca-se o misticismo de figuras como Santa Teresa de Ávila ou sonda-se o misticismo dos textos religiosos. Poderá raiar a impropriedade vocabular dizer-se que o Estádio do Jamor ou outro recinto desportivo qualquer tem misticismo, porque não é uma realidade a que se reconheça vida interior. No entanto, sem hesitação, aceita-se o nome mística referido aos mais variados lugares, porque estes induzem estados próximos da religiosidade, como acontece com os estádios de futebol. Estes podem funcionar como santuários, por profanos que sejam, investidos da capacidade de despertar ou satisfazer o misticismo clubístico. Há, portanto, certa circularidade semântica entre misticismo e mística, que os torna ora sinónimos ora termos complementares. O dicionário da Academia das Ciências de Lisboa e na Infopédia leva a essa mesma conclusão quando atribui definições que, permitindo distinguir as duas palavras, não deixam de andar muito próximas:
misticismo – «3. tendência para crer no sobrenatural»
mística – «atitude coletiva afetivamente assente na devoção a uma ideia, uma causa, uma personalidade, um clube, etc.»
Convém também registar algumas curiosidades etimológicas. Tanto misticismo como mística são palavras da família de místico, que, por via do latim mystĭcus, remonta ao grego mustikós, «relativo aos mistérios, às cerimónias religiosas secretas» (Dicionário Houaiss). Também parente muito próxima é a palavra mistério, por partilhar o radical mist-, do grego mústēs, «iniciado nos mistérios», derivado do verbo também grego múō, «fechar-se; fechar (especialmente os olhos ou a boca)», ao que parece, proveniente de mu- usado como onomatopeia sugestiva de um som inarticulado e terá relação histórica com o latim mutus, que deu mudo em português (ibidem). Daqui, a pesquisa atinge já o domínio do inefável, o que traz alguma ironia a este apontamento, porque muda não terá sido a massa que se reuniu no Estádio do Jamor.
Mas, no trecho em questão, faria mais sentido ou seria até mais correto o uso de mística? A resposta deixa a insatisfação de um empate: pensando na cultura do futebol, seria de esperar «conhecer a mística do Estádio Nacional», só que os estádios são hoje «catedrais do desporto» e, portanto, de mística a misticismo é curto o passe semântico.
1 Agradeço ao consultor Paulo J. S. Barata a chamada de atenção para este uso de misticismo.