Em Portugal, no início de 2023, o Tribunal Constitucional (TC) considerou inconstitucional o Decreto da Assembleia da República n.º 23/XV, o qual visa regular as condições em que a morte medicamente assistida não é punível por lei. Para o TC, conforme se expõe no Acórdão n.º 5/2023, o artigo 2.º, alínea f do decreto em causa tem sintaxe ambígua:
«Artigo 2.º
Definições
Para efeitos da presente lei, considera-se: [...] f) «Sofrimento de grande intensidade», o sofrimento físico, psicológico e espiritual, decorrente de doença grave e incurável ou de lesão definitiva de gravidade extrema, com grande intensidade, persistente, continuado ou permanente e considerado intolerável pela própria pessoa; [...].»
O TC considera que, no começo da definição de «Sofrimento de grande intensidade», isto é, onde se lê «o sofrimento físico, psicológico e espiritual», pode haver duas interpretações antagónicas para a conjunção e: uma «cumulativa» e outra «alternativa».
Não pretendendo discutir o juízo do TC, procuremos enquadrar a questão em causa apenas linguisticamente.
Assim:
– Do ponto de vista linguístico, temos uma construção com a conjunção e. Relativamente à sua pertença a uma classe gramatical, a palavra e é uma conjunção coordenativa copulativa e que , nesta frase, pelo menos, aparentemente, o valor semântico de adição, isto é, marca a ligação de dois termos de idêntica função. Nesta perspetiva, «sofrimento físico, psicológico e espiritual» significará, como sustenta o TC (Acórdão n.º 5/2023, II. fundamentação, ponto E), que «é exigido, cumulativamente, o sofrimento físico, o psicológico e o espiritual».
– Contudo, poderá a conjunção e, à semelhança da conjunção ou, exprimir uma opção, alternativa? É de notar que a maioria das gramáticas consultadas é omissa em relação à eventualidade desta sinonímia1. Por exemplo, na Gramática do Português da Fundação Calouste Gulbenkian, além dos valores adicionais, atribuem-se à conjunção e outros valores, mas não o de disjunção (págs. 1792-1796).2
Há, ainda assim, um estudo em que o autor faz a seguinte observação:
«Em alguns contextos ou situações, a partícula e parece imantar-se do significado dos membros da frase por ela interligados, insinuando assim a ideia de distinção, discriminação, oposição ou contraste, inclusão, simultaneidade, realce, […]. Em “há estudante e estudante …”, e contagia-se da distinção implícita (sugerida não apenas pelo contexto em que se insira a frase mas também pelas reticências ou pelo tom reticencioso da sua enunciação) entre os atributos de duas categorias de “estudantes”: os verdadeiros, i.e., assíduos, estudiosos, e os outros, que se dizem tais. Nesse caso, e indica adição com discriminação ou distinção e, mesmo oposição.» (Garcia, 2010:42, apud Canhinguiquine, 2022:68)3
Não obstante, parece claro que, para ter este valor, e deve ocorrer em casos particulares, com determinados contexto e entoação (ou pontuação), o que não parece ser o que aqui se discute.
Deste modo, dir-se-á que leitura alternativa da conjunção e que o acórdão do TC deteta é, no mínimo, inusitada, porque é provável que, na adjetivação do sofrimento definido pelo decreto declarado inconstitucional – «físico, psicológico e espiritual» –, a intuição dos falantes se incline para a interpretação cumulativa.
Ambígua seria sem dúvida a referida adjetivação se nela se incluísse a conjunção ou, esta, sim, classificada como disjuntiva:
(1) «Sofrimento: sofrimento físico, psicológico ou espiritual.»
Em (1), o ou é uma conjunção coordenativa disjuntiva, i.e., o «valor semântico fundamental é o de exprimir uma opção, em alternativa, entre os membros de um conjunto, representados pelos termos coordenados» (ibidem, pág. 1796).
1 Maria Helena Mira Mateus et al. Gramática da Língua Portuguesa (2.ª edição); Gramática do Português, da Fundação Calouste Gulbenkian; Celso Cunha e L. F. Lindley Cintra, Nova Gramática do Português Contemporâneo.
2 Contam-se dois tipos de coordenação disjuntiva. Fala-se de disjunção inclusiva, quando «o falante admite a possibilidade de que apenas um dos termos da coordenação satisfaça a proposição expressa pela frase, mas não fica excluída a possibilidade de [...] os termos satisfazerem a proposição»; quanto à disjunção exclusiva, trata-se de admitir «apenas um, e só um, dos termos satisfaz a proposição expressa pela frase, mas não ambos» (ex.: «O Pedro está em Paris ou em Londres» , não pode estar em dois sítios ao mesmo tempo) (Gramática do Português, da Fundação Calouste Gulbenkian, pág. 1796). Numa leitura disjuntiva inclusiva de (1), a leitura pode ser quer alternativa, quer cumulativa: «sofrimento físico, psicológico ou espiritual, ou os três»; se a leitura de (1) for exclusivamente disjuntiva, então, o sofrimento é «ou físico, ou psicológico ou espiritual».
3 Canhinguiquine, J. L.(2022), Relações Semânticas das Conjunções "e", "mas", "portanto" e "quando" em textos de opinião de alunos universitários angolanos. Universidade de Évora. Disponível, aqui.