DÚVIDAS

Sobre o uso de e/ou

Ao consultar artigos das Ciberdúvidas relativos a «e/ou» [O emprego do e/ou e Conjunções coordenativas e/ou], creio ser pertinente referir o seguinte, em apoio, aliás, da posição do consulente Ricardo Lopes e manifestando que discordo do consulente Ricardo Castro quando refere que «e/ou» tem alguma justificação com as "portas lógicas" usadas nos fluxogramas para programação de computador (esse argumento também serviria para justificar o que manifesto abaixo):

É de notar que a função ou, em termos lógicos, pode existir com dois significados: um inclusivo e outro exclusivo. Exemplos:

1. Inclusivo: «Hoje vou ao teatro ou ao futebol.»

2. Exclusivo: «Hoje, às 21h00, vou ao teatro ou ao futebol.»

Como anotação, note-se ainda a forma exclusiva com duplo ou, com o mesmo funcionamento do exemplo 2 acima patente: «Hoje, ou vou ao teatro, ou vou ao futebol.»

A proposição 1 terá valor lógico verdadeiro se o sujeito for apenas ao teatro, apenas ao futebol ou a ambos no mesmo dia, como se poderá, de resto, determinar perguntando ao sujeito: «Foste ao teatro? Foste ao futebol?» Quer o sujeito responda «Sim, fui ao teatro», «Sim, fui ao futebol», ou «Sim, fui ao teatro e ao futebol», resultará um estado de verdade.

A proposição 2, por outro lado, terá valor lógico verdadeiro se o sujeito for apenas ao teatro ou apenas ao futebol, nunca aos dois destinos.

Mesmo aceitando que nas ocorrências línguísticas a lógica não será de natureza completamente matemática, parece-me redundante, e como tal desnecessário (e para mais parece deselegante, descontínuo, complicado e pouco ortodoxo face ao uso habitual e harmonioso da pontuação) utilizar e/ou. Ao fazê-lo, está-se a realçar que se trata de uma função ou inclusiva, prevenindo o risco de uma interpretação do ou como exclusivo. Ora um ou, sem mais, é já, por natureza, inclusivo, como exemplifiquei acima (explicitamente, a resposta «Sim, fui ao teatro e ao futebol» inclui até a conjunção, função lógica e).

Será, então, "excesso de zelo" usar e/ou. É bem preferível utilizar apenas ou.

Ora o facto de eu apresentar este ponto de vista de forma tão assertiva não quer dizer que não tenha dúvida, por isso agradeço desde já a V. Exas. a cortesia de um esclarecimento.

 

P.S.: Em adenda à minha recém-enviada dúvida, gostaria ainda de referir as seguintes frases:

«O nosso clube aceita homens e mulheres.»

«O nosso clube aceita homens ou mulheres.»

Estas duas frases mostram como, em termos linguísticos, a função e e a função ou podem ser equivalentes!

Na realidade, como nos encontramos a discutir a aplicação de e/ou, podemos dali de novo inferir que o ou (inclusivo, como é) já inclui o efeito que a conjunção e procura expressar, pelo que não haveria qualquer necessidade de dizer: «O nosso clube aceita homens e/ou mulheres.»

Resposta

As atentas observações do consulente e as perguntas e as respostas em causa mostram que a conjunção ou é ambígua: tem dois valores, inclusivo e exclusivo. A sequência e/ou acaba por revelar-se inequívoca, porque evita a ambiguidade de ou, por exemplo, num contexto como o seguinte:

(i) As portas foram pintadas a verde ou a vermelho.

Em (i), são possíveis duas interpretações (cf. John Lyons, Semantics, Cambridge, Cambridge University Press, 1977, pág. 144):

a) inclusiva, quando a frase (i) é sempre verdadeira, tenham as portas sido pintadas só a verde, só a vermelho ou a verde e vermelho simultaneamente;

b) exclusiva, se for verdade que as portas foram pintadas a verde mas não a vermelho ou vice-versa.

Dada a ambiguidade de ou nos planos lógico e semântico, percebe-se que a expressão e/ou se torna mais clara, já que representa apenas o valor inclusivo de ou. Cabe, porém, referir que este ou outros pareceres serão sempre controversos, porque o próprio modelo de e/ou, que é and/or, tanto tem defensores como tem detractores no próprio mundo de língua inglesa. Sem querer e/ou poder ir mais longe, deixo a tradução de algumas linhas de uma página da Internet a propósito dessa controvérsia:

«No seu excelente livro The Language of Judges [= A Língua dos Juízes] (Chicago 1993), Larry Solan (que é linguista e professor de Direito) dedica catorze páginas à "regra do and/or" como é usada no contexto jurídico, assinalando que os comentadores de estatutos que se têm deparado com usos jurídicos de and [=e], or [=ou] e and/or [=e/ou] dizem que esta expressão tem fama de vaga e inexacta.

Pareceria que Geoff Pullum tem razão quando diz: "A teoria certa do que or [= ou] significa em inglês é que, geralmente, é inclusivo mas por vezes o caso exclusivo é comunicado como uma implicatura conversacional.»1 2

1 No original, em inglês, disponível em http://languagelog.ldc.upenn.edu/nll/?p=47 (consultado em 7/01/09): «In his excellent book, The Language of Judges (Chicago 1993) Larry Solan (who is both a linguist and a law professor) devotes 14 pages to "the and/or rule" as it is used in the legal context, noting that commentators on statutes who have encountered the legal uses of and, or, and and/or say that this expression is notoriously loose and inaccurate.

[...] It would seem that Geoff Pullum is quite right when he says: "The right theory of what or means in English is that it is in general inclusive but that sometimes the exclusive case is conveyed as a conversational implicature."»

2 Sobre implitação ou implicatura, leia-se a definição José Pinto de Lima, em Pragmática Linguística (Lisboa, Editorial Caminho, 2006, pág. 108):

«"Implicitar algo" contrasta com "dizer algo": se X disser a Y "Já não te via há séculos!", X não quer dizer literalmente o que disse, mas — através dessa enunciação — implicita o que quer dizer (i. e., que já não via Y há bastante tempo). Literalmente, a enunciação de X infringe o princípio de cooperação e, mais espcificamente, a máxima conversacional da Qualidade, "Não digas o que crês ser falso!" Mas como Y crê que X continua a querer cooperar na conversação, Y toma a infração à máxima da Qualidade como um meio de que X se serve para introduzir uma implicitação, que compete a Y descobrir. Implicitação tanto pode designar o acto de implicitar como o produto desse acto, i.e., a proposição implicitada. Ambas as coisas também podem ser designadas por implicatura, embora este termo designe preferencialmente o produto do acto.»

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