« (...) Além do seu significado literal ("peça ou artefacto para cobrir o rosto"), máscara assume os sentidos figurados de "disfarce" e "dissimulação". (...)»
Vivemos no final da semana passada [em 22/04/2022] a concretização de um desejo imenso: o de poder deixar cair as máscaras com que, literalmente, nos cobrimos ao longo dos dois últimos anos, impedindo-nos de ler no rosto do outro as suas reações e emoções. Amanhã, quando entrar nas salas de aulas, vou finalmente conhecer o rosto dos meus alunos e certamente ter algumas surpresas ao constatar que muitos deles são bem diferentes daquilo que tenho imaginado. Os meus netos vão finalmente rever ou ver pela primeira vez os rostos das pessoas que [cuidam deles] no jardim de infância e terão a oportunidade de ver os movimentos faciais que os adultos fazem ao falar, elemento crucial para aprender a articular os sons e adquirir a linguagem nas suas diferentes facetas.
As palavras máscara em português e em espanhol, masque em francês e mask em inglês terão todas a mesma origem, i.e., a palavra maschera, com o significado de «rosto falso», atestada no século XIV, na obra de Giovanni Boccacio, autor que, tal como Dante Alighieri, era natural de Florença, berço da língua italiana. Além do seu significado literal («peça ou artefacto para cobrir o rosto»), máscara assume os sentidos figurados de «disfarce» e «dissimulação». Do mesmo modo, a expressão «cair a máscara», além do seu significado literal, tem um significado figurado que a constitui como expressão idiomática – deixar «cair a(s) máscara(s)» ou, na sua forma nominalizada, «o cair das máscaras», alude às situações em que alguém deixa de representar um personagem e revela a sua verdadeira persona, o seu caráter, ou as suas verdadeiras intenções.
Todos usamos máscaras e encarnamos personagens diversas em diferentes momentos e circunstâncias, porque a vida está cheia de metáforas e pode bem ser entendida como um grande palco. As crises são sempre momentos de clarificação, de cair de máscaras, de desmascaramento: é ao enfrentar um problema grave que descobrimos quem são os nossos verdadeiros amigos, assistindo ao desaparecimento dos que consideráramos elementos fundamentais das nossas vidas, que deixam finalmente cair as suas máscaras e nos dão a ver a sua essência. Apesar de doerem, devemos encarar estas desilusões como oportunidades de deixar entrar a luz, arrumar a casa e de nos livrarmos da tralha e do lixo que nos entravaram por tanto tempo. Em contrapartida, também assistimos ao regresso de alguns amigos que não víamos há muito ou que julgávamos até perdidos e para eles devemos criar espaço.
A nível social, é também nos momentos de crise, e das inevitáveis mudanças que acarretam, que vemos muitas máscaras caírem e novas máscaras serem afiveladas. A Revolução de 25 de Abril de 1974, que hoje [25/04/2022] celebramos, ao desencadear uma rutura profunda com o passado, foi um momento de desmascaramento, mas também de novos emascaramentos. Caíram, e.g., as máscaras dos denunciantes, dos agentes da PIDE-DGS e dos informadores, mas também as máscaras de muitos lutadores pela liberdade e dos que viviam na clandestinidade ou no exílio. Outros, porém, rapidamente precisaram de afivelar novas máscaras – de defensores da liberdade e de democratas – e, com elas postas, viveram décadas a fio até perderem vergonha e recato e as deixarem cair, revelando o rosto hediondo da cobiça e do ódio, da intolerância, do machismo e da xenofobia... Esta guerra a que vamos assistindo em direto, com incredulidade, tristeza e revolta, tem também feito cair muitas máscaras e revelar rostos que não quereríamos ter de confrontar alguma vez.
Artigo publicado no Diário de Notícias de 25 de abril de 2022.