«Se calhar, um dia hei-de ter saudades de cobiçar tanto como cobiçava quando o mundo parecia transbordar de coisas que eu pensava precisar. Mas duvido. Digo-o apenas para poder descobiçar à vontade.»
Agora que já não há folhas para folhear mas ainda há páginas digitais, como é que se diz? Em vez de folhear, proponho apontar ou coçar: são estes os gestos que o leitor faz com os dedos no écran.
“Já apontaste o jornal de hoje? Que revista é que estás para aí a coçar? Deve ser coisa boa, porque estás cheio de comichão!”
Também fazemos lembrar os ratinhos a fazer girar a roda da gaiola, na esperança vã de aparecer alguma coisa nova do outro lado. Ou cães a afastar terra do buraco onde enterraram o osso, no tempo em que havia ossos:
“O que é que tu andas a desenterrar agora?”
Estando eu a coçar revistas e a encontrá-las cheias de coisas para oferecer no Natal, ocorreu-me um pensamento libertador: não queria nada daquilo.
Será esta, finalmente, uma das consolações do tempo de planeta que eu já levo? A verdade é que começo a tomar-lhe o gosto, a este exercício de descobiçar que é o pesadelo dos publicitários.
Descobiçar é gozar o alívio de não ter de ir àquele restaurante; o tempo que se ganha em não visitar aquela cidade horrível, muito na moda; o descanso que advém de não vestir aquele casaco; a paz de alma que nasce de continuar a não conhecer aquela pessoa.
Descobiçar é desprender o ratinho daquela roda, sentá-lo num pequeno cadeirão com um pequeno bom livro e vê-lo marimbar-se para o mundo que passa lá fora.
Se calhar, um dia hei-de ter saudades de cobiçar tanto como cobiçava quando o mundo parecia transbordar de coisas que eu pensava precisar. Mas duvido. Digo-o apenas para poder descobiçar à vontade.
Pegue-se, por exemplo, no supra-sumo da cobiça, que é a revista How To Spend It do Financial Times. Ainda se lembra quando criava desejo, desasossego e frustração?
É, não é? É quase uma conversão religiosa.