« (...) As palavras são como cebolas, que, à medida que as descascamos, apresentam sempre camadas mais profundas. (...) »
Corporativismo (ou corporatismo) provém do francês e terá feito a sua entrada em português em 1930, segundo o Houaiss, que não apresenta abonação. A Constituição Política da República Portuguesa, de 1933, afirma que «o Estado português é uma República unitária e corporativa (art.º 5.º)»; nesta questão, o português esteve sincronizado com outras línguas europeias, hélas... Corporativismo tem um sentido especializado («doutrina ou sistema político e económico que se baseia na organização de corporações que agrupem trabalhadores e empresários, para, sob a tutela do Estado, funcionarem como elemento de governação» (Infopédia) e desenvolveu um sentido corrente, de «defesa exclusiva dos próprios interesses profissionais por parte de uma categoria profissional; espírito de corpo ou de grupo» (Houaiss, versão portuguesa).
Em francês, corporatisme provém do inglês, entra na língua em 1911 e tem duas aceções, a especializada e a corrente, esta sinónima de esprit de corps, «ligação ou devoção ao corpo, ao grupo ao qual se pertence» (Petit Robert). No italiano, corporatismo tem também duas aceções, a especializada, datada de 1929, e descrita como «teoria e prática política e social própria de um regime autoritário, em particular do fascismo, que, partindo da negação do conceito de luta de classes, substitui o sindicato pela corporação profissional, na qual se encontram presentes tanto os patrões como os trabalhadores», e a corrente, de 1893, descrita como «defesa exagerada dos interesses próprios por parte de categorias profissionais particulares» (Sabatini Coletti). O dicionário da Real Academia Española trata corporativismo de forma muito semelhante ao Sabatini Coletti, mas não tem datações nem abonações.
O Oxford English Dictionary situa em 1930 a entrada de corporativism em inglês, com uma abonação do The Economist. Também corporatism, forma preferencial, surge nos EUA, com primeira abonação de 1890, do Advance (semanário de Chicago); é definido no Merriam Webster como «a organização de uma sociedade em corporações industriais e profissionais funcionando como órgãos de representação política e exercendo controlo sobre pessoas e atividades sob a sua jurisdição». Em nenhum dicionário de língua inglesa encontrei nenhuma aceção relacionada com a segunda verificada em português, francês, italiano e espanhol.
As palavras são como cebolas, que, à medida que as descascamos, apresentam sempre camadas mais profundas. Eu gosto muito de descascar estas maravilhosas cebolinhas, pois através da descrição das palavras nos bons dicionários podemos compreender melhor como os conceitos e as ideias se vão instalando nas línguas e nas sociedades. Pena é que a língua portuguesa não tenha uma lexicografia rica e pujante como outras línguas.
O que suscitou esta minha divagação? A notícia de que a Ordem dos Enfermeiros admite ir para tribunal contra o Decreto 9-A/2021, que pretende contratar enfermeiros estrangeiros; um dos argumentos invocados é a questão do conhecimento da língua... Lembrei-me inevitavelmente da "crise" dos dentistas brasileiros nos anos 1980, da "crise" dos médicos de países de Leste nos finais de 1990. Enfim, apenas um remake de uma história já nossa conhecida.
Artigo publicado no Diário de Notícias no dia 1 de fevereiro de 2021.