«A língua portuguesa tem de ser ensinada, ouvida e lida na Galiza» - Diversidades - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
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«A língua portuguesa tem de ser ensinada, ouvida e lida na Galiza»
«A língua portuguesa tem de ser ensinada,
ouvida e lida na Galiza»
Reclama o presidente da Associação Galega da Língua

« (...) Da mesma maneira que o alsaciano usa a ortografia do alemão e o quebequês a ortografia do francês, também o galego deve poder usar uma ortografia comum com o português. (...)»

 

 

O que é o movimento reintegracionista galego?

É um movimento linguístico-cultural que pretende diluir tanto quanto possível as fronteiras entre o galego e o português, nomeadamente aquelas que consideramos mais artificiais. O galego fala-se na Galiza, que administrativamente é uma comunidade autónoma espanhola onde esta língua é cooficial e ensinada nas escolas. Só que nos dias de hoje é ensinada sem ter em conta o sistema linguístico ao qual pertence do ponto de vista da Filologia, o galego-português. Por exemplo, ensina-se um modelo de galego que usa a ortografia do castelhano. Nós consideramos que esta ortografia é uma fronteira artificial que dificulta, sem necessidade, o contacto linguístico entre as pessoas das duas margens do rio Minho e por isso propomos deitar abaixo esse muro, adotando uma ortografia essencialmente comum à portuguesa para o galego. Isto não quer dizer que nos oponhamos liminarmente ao uso da castelhana, que entendemos por motivos políticos e de outro teor, mas ela tem de ser compatível com o emprego doutra, convergente com o português.

Mas o galego e o português são a mesma língua?

Ainda que a política tivesse afastado o galego do português de forma abrupta no final da Idade Média (o galego deixou de ser uma língua escrita durante a Idade Moderna enquanto o português continuou o seu percurso natural como língua de um reino independente), as nossas falas continuam a pertencer ao espaço linguístico galego-português de um ponto de vista histórico-filológico. Por isso, da mesma maneira que o alsaciano usa a ortografia do alemão e o quebequês a ortografia do francês, também o galego deve poder usar uma ortografia comum com o português.

E isso, para quê?

Para as pessoas portuguesas perceberem as nossas motivações, vou pôr um exemplo com o apelido do intelectual homenageado este ano no Dia das Letras Galegas, a nossa grande festa cultural: Ricardo Carvalho Calero. Hoje em dia, nas escolas galegas ensina-se que “carvalho” se escreve “carballo”, com a ortografia do castelhano. O facto de aprendermos assim esta palavra faz com que ela sirva para nos relacionar apenas com 2 000 000 de pessoas em vez de com 250 000 000. Desta forma, com a decisão política que determina que o galego não pode usar uma escrita convergente com o português, teoricamente para as crianças não terem de aprender dois sistemas gráficos diferentes, a nossa língua perde um grande valor comunicativo, fragilizando-se ainda mais do que já está, porque as pessoas que usam uma língua têm de sentir que ela é útil em termos comunicativos, não só sentimentais. Em caso contrário, deixam de transmiti-la às seguintes gerações. Nós queremos impedir isso.

Qual é a origem do reintegracionismo e como tem mudado desde a fundação da AGAL até aos nossos dias? 

O movimento reintegracionista tal e como hoje o conhecemos nasce em 1981, precisamente com a fundação da AGAL. Nesse mesmo ano, Ricardo Carvalho Calero escreve o primeiro livro da história em “galego reintegrado”, quer dizer, usando uma ortografia essencialmente portuguesa para o seu galego. Com estes dois passos começam a aplicar-se na sociedade os princípios que já tinham sido defendidos teoricamente desde muito antes.

Como já mencionei, depois da etapa medieval, na Idade Moderna, o galego-português deixou de se escrever a norte do Minho (na Galiza), embora tenha continuado no sul com o nome de português. Quando voltou a ser escrito na Galiza, no final do século XIX, a maioria de escritores e escritoras (particularmente Rosalia de Castro) usaram a ortografia castelhana para o fazerem, mas praticamente desde que isso aconteceu sempre houve autores que defenderam dar passos em relação à adoção de cada vez mais traços da ortografia portuguesa, sobretudo desde que foram descobertas as cantigas medievais que mostravam que havia um passado literário comum com Portugal. Só que, na prática, com o galego fora das escolas, isso era muito difícil de aplicar. Porém, nos anos setenta do século passado, quando já se adivinhava o fim do Franquismo, o debate ressurgiu com força. O galego iria ser ensinado nas escolas, de maneira que seria possível aprendê-lo com uma ortografia convergente com o português e utilizando a gramática desta língua como modelo para construir o seu padrão. Quer dizer, seria possível reintegrar o galego no seu sistema linguístico, restaurando o seu léxico e estruturas mais genuínas. Esta foi a circunstância que motivou que cada vez mais intelectuais (entre eles o português Rodrigues Lapa) se pronunciassem a favor de substituir a ortografia castelhana do galego, que era a usada na altura, pela portuguesa.

Naquela altura, a proposta foi rejeitada pelo poder político, mas na atualidade temos a certeza de que ela será reconsiderada. Apesar de ter sofrido uma forte estigmatização ao longo dos anos 80 e 90, o reintegracionismo fortaleceu-se. Nisto terá tido influência a crise aguda que o galego está a sofrer em relação à sua transmissão natural às novas gerações e também a evolução das telecomunicações. Num mundo aberto e hiperligado como o atual, não faz sentido continuarmos desligados do português de maneira forçada.

Fala-nos um pouco do movimento reintegracionista galego e do trabalho que desenvolve a AGAL - Associaçom Galega da Língua.

Antes de mais, é preciso esclarecer que, considerando o conjunto da sociedade, o reintegracionismo é um movimento minoritário. Ele tem muita importância no âmbito cultural, mas ninguém imagine que toda a gente anda a falar disso nos bares. Ora, nos meios culturais, tem muita influência e uma importância crescente. É formado por uma constelação de pessoas e associações bastante numerosa que age em áreas muito diversas. Seria impossível lembrar todas, mas para fazeres uma ideia do que significa socialmente, há entidades musicais, culturais, educativas, comunicativas, políticas, etc. Para além da AGAL, vou só referir um dos projetos mais recentes: as Escolas de Ensino Galego “Semente”. Trata-se de uma rede educativa que usa o “galego internacional” (como nós chamamos ao nosso “português”) como língua veicular. Por enquanto só abrange o ensino infantil e primário nas principais cidades, mas tenho a certeza que vai chegar longe. É a grande esperança para garantir a transmissão intergeracional do galego.

Quanto à AGAL, ela dedica-se exclusivamente a fazer penetrar o ideário reintegracionista na sociedade. Nessa missão, além de ser a mais antiga, continua a ser a predominante, por volume de atividade e massa associativa. A AGAL desenvolve projetos muito estáveis e conhecidos do reintegracionismo: o Portal Galego da Língua, a Editora Através, cursos em Portugal e online, o consultório linguístico @emgalego… e já desenvolveu outros que entretanto estão inativos, mas que foram muito importantes na sua época: os Congressos Internacionais da Língua Galego-Portuguesa, a revista Agália ou uma livraria.

Quais são as perspetivas de futuro da língua galega?

São promissoras se estiver dentro do universo da língua portuguesa, mas escassas se continuar o seu caminho isoladamente. Na atualidade, só as pessoas galeguistas têm incentivo para transmitir o galego aos seus filhos e filhas, aliás de forma muito deficitária num ambiente de castelhanização geral. Mas o galego tem de ser interessante para toda a população. Se o reintegracionismo pudesse participar na gestão da situação, (chegará esse dia, ninguém tenha dúvida disso), as pessoas poderiam usar o seu património linguístico (o galego-português, mas também o castelhano) para se relacionarem naturalmente com dois dos universos linguísticos mais importantes do mundo.

Neste momento, como é abordado o papel da língua galega nos estabelecimentos escolares da Galiza e qual é a importância do ensino do português nestes estabelecimentos? 

O galego é ensinado obrigatoriamente nas escolas. O galego oficial (com ortografia castelhana), não o reintegrado (com ortografia portuguesa) que nós propomos. Mesmo assim, ele tem muitas dificuldades, administrativas e sociais, para se tornar língua veicular nas restantes cadeiras. Para além disso, exceto em zonas predominantemente rurais, nas últimas décadas deixou de ser a “língua do recreio”, porque deixou de ser transmitido às novas gerações. Eis a razão pela qual surge uma iniciativa que já mencionei: a Semente, uma rede escolar que pretende contornar essa situação. Em relação ao português, ele é lecionado nas Escolas Oficiais de Idiomas das cidades (ensino para adultos), mas no ensino primário e secundário, apesar da Lei Paz Andrade, é ensinado em muito poucos estabelecimentos de ensino de forma optativa.

Como pode contribuir a língua portuguesa para a Galiza?

Nos dias de hoje poucas pessoas defensoras do galego têm dúvida de que é urgente que o português chegue ao ensino na Galiza. Para já, é um recurso desaproveitado pelos galegos e galegas de um ponto de vista sociocultural e económico. Até a direita galega, tradicionalmente desinteressada por esta questão, foi capaz de ver isso quando avançou com a Lei Paz Andrade. Por outro lado, seria vital para o próprio galego, que escamba para o castelhano a grande velocidade, para reforçar a sua estrutura interna. O contacto com o português permitiria a revalorização do léxico e das estruturas genuínas galegas. Repara, quando eu era criança, os adultos costumavam usar o verbo “brincar” com o mesmo valor que tem em português. Hoje, só três décadas depois, quase toda a gente usa só “jogar” com esse valor, como em castelhano, mesmo nos livros infantis editados para ensinar galego às crianças. Qual foi o problema? A desconexão do português. A língua portuguesa tem de ser ensinada, ouvida e lida na Galiza. É a única forma que eu vejo nos dias de hoje para parar essa deriva.  

Qual é a importância de Carvalho Calero para o universo da Lusofonia? 

Carvalho é um dos intelectuais galegos mais importantes do século XX. Para muitas pessoas, o mais importante com muita diferença. Ensaísta, poeta, romancista, crítico literário, linguista, ele foi tudo para a nossa cultura. E também foi o primeiro que escreveu um livro usando para o galego uma ortografia essencialmente comum à portuguesa . Só isso já justificaria ser mencionado nas escolas portuguesas, mas ele foi também imprescindível na defesa das liberdades. Primeiro, quando Franco se levantou contra a República e depois quando a opção de usar uma ortografia comum com a portuguesa foi excluída pelo novo poder político pós-franquista. Essa é a razão de ter sido preso e ostracizado durante praticamente toda a sua vida adulta. Tenho pena que não tivesse realizado o seu desejo de redigir a parte galega da gramática luso-brasileira de Celso Cunha e Lindley Cintra, pois os três morreram a pouco tempo de concretizarem o projeto. Quando a Galiza fizer parte da Lusofonia, linguística e institucionalmente (esse momento acabará por acontecer, tenho a certeza), Carvalho Calero será dos autores mais celebrados da nossa língua, à altura de Leite de Vasconcelos ou Rodrigues Lapa.

A Lei Paz Andrade, aprovada por unidade pelo Parlamento galego em 2014, praticamente não saiu do papel. O que falta para a impulsionar? 

Falta vontade política, e ela por enquanto não se encontra no Partido Popular, que é o partido da direita que está no poder na Galiza. Com isto não quero dizer que a direita não se tenha movido. A situação do galego é tão crítica e a necessidade de aplicar políticas reintegracionistas tão evidente que até a direita política se deslocou timidamente para as nossas posições. Daí que fosse possível a aprovação da Lei Paz Andrade por unanimidade, como dizes. Esta lei pretende tirar proveito dos vínculos linguístico-culturais da Galiza com a Lusofonia no ensino e nas telecomunicações, bem como fomentar a presença galega em organismos internacionais lusófonos. Porém, indo ao concreto, o nó górdio da lei que gostaríamos de desfazer de forma mais urgente encontra-se no ensino. Para ela valer realmente a pena, deve servir para universalizar o ensino do português na Galiza. Isso abriria tantas portas aos galegos e galegas e à nossa cultura que o debate linguístico que temos na atualidade já não se voltaria a colocar nos mesmos termos. A esquerda galeguista representada pelo BNG já prometeu que iria levar isso a cabo se chegasse ao poder, mas não chega. Nós achamos que se trata de um assunto estratégico que não pode depender da cor política de quem estiver no governo. Tem de avançar por consenso, sem depender das diferentes forças partidárias do país.

Achas que seria benéfico o ensino da língua galega no território português?

Qualquer relacionamento que implique mostrar-nos como realmente somos é interessante e jamais devemos pôr empecilhos a esse conhecimento mútuo. Embora nós defendamos que galego e português são a mesma língua, a verdade é que, na atualidade, não são tratadas como tal pelas instituições e isso também tem de ser mostrado. Ora bem, devemos ser realistas nas nossas aspirações e a necessidade desse ensino em Portugal não é comparável à de o português ser ensinado nas escolas galegas. Em termos estritamente linguísticos, o português é estável e o galego extremamente frágil e está muito castelhanizado. É a segunda que precisa de reforço do primeiro para não continuar a escorregar para o castelhano, e não o contrário. Depois, em termos práticos, também devemos ser realistas. O português abre portas económicas e socioculturais à população galega que o galego não está em condições de abrir às pessoas portuguesas na Galiza, onde por essa razão elas usam normalmente o castelhano.

Como podem os portugueses ajudar no processo de normalização linguística da Galiza e qual achas que deveria ser o papel da Galiza na CPLP?

Esta entrevista é um bom começo. Nos últimos anos, temos notado cada vez mais interesse na questão linguística galega, quer por parte de portugueses quer por parte de brasileiros. Dar a conhecer o nosso caso em meios como este facilita que as pessoas vindas da Galiza sejam reconhecidas como galegas em Portugal e isso é muito importante para a nossa “autoestima” cultural. Por outro lado, chegado o momento, acho que a opinião pública portuguesa vai ser fundamental para exigir o direito da Galiza de pertencer à CPLP, em vez de outros países, como a Guiné Equatorial, que nada têm a ver com a Lusofonia de um ponto de vista linguístico e cultural. Quanto ao papel da Galiza na CPLP, é importante lembrar que o velho reino da Galiza é o berço do galego-português, que falava D. Afonso Henriques antes de o reino de Portugal começar a dar os primeiros passos. Não achas que o berço da língua portuguesa deveria ter um papel no principal organismo dos países de língua portuguesa?

 

Primeira imagem: Eduardo Maragoto. Imagem Nós Televisión

Fonte

Entrevista de Diego Garcia a Eduardo Maragoto, presidente da Associação Galega da Língua, divulgada no jornal eletrónico Esquerda.net, em 11 de outubro de 2020, aqui transcrita com a devida vénia.

Sobre o autor

Licenciando em Estudos Europeus. Dirigente distrital de Viseu do Bloco de Esquerda