«O adjectivo é a tinta que esmalta a frase, é o colorido que lhe imprime tonalidade. Tanto que a excessiva adjectivação torna o estilo berrante, pejado, à guisa de tela em que a derrama e copiosidade de tintas acaba por empastar o motivo. (...)»
* filólogo brasileiro Carlos Góes (1881–1934), em artigo publicado "Revista de Língua Portuguesa" (Rio de Janeiro, 1921) com o título "Do Adjectivo", conforme transcrição na antologia "Paladinos da Linguagem" (terceiro volume, edição Aillaud e Bertrand, Lisboa, 1921), organizada por Agostinho de Campos.
Como os indivíduos, a palavra tem linhagem, hierarquia, prosápia.
É verdade que há palavras que brotam do chão, como as ervas, como há indivíduos sem ascendência cógnita. Em regra, porém, na linguagem não plebeia, na linguagem culta e fina, a palavra tem sempre a sua linhagem, cujos traços, o tempo, a evolução, a acção climática, os costumes acabam por alterar. Ainda, porém, que essas alterações sejam de tal ordem que espunjam a facies primitiva, há sempre, na família de palavras emanadas do mesmo tronco, uma que mantém vivos, inalteráveis, perenes, os traços da genealogia: essa palavra é o Adjectivo, vocábulo por isso heráldico, de estirpe, depositário fiel, custódio das tradições de nobreza e linhagem herdadas de seus avitos.
Tomemos os vocábulos bôca, estrêla, gôsto, pedra. Todos os seus derivados que não forem adjectivos, pautar-se hão por aqueles, constituídos em paradigmas ou padrões, para efeitos de derivação: bocado, embocar, estrelejar, gostar, pedreira. Mas, se remontarmos ao adjectivo, aí encontraremos estereotipados todos os característicos do étimo latino: bucal (cf. bucca), estelar (cf. stela), gustativo (cf. gustu), pétreo (cf. petra).
Tanto que o melhor processo para, em uma família de palavras, remontar ao étimo puro, é procurar o Adjectivo, no qual será fácil rastrear os sinais ou indícios do padrão primitivo.
Mas não é essa a única função, que estrema o adjectivo entre as demais categorias gramaticais.
O adjectivo é a tinta que esmalta a frase, é o colorido que lhe imprime tonalidade. Tanto que a excessiva adjectivação torna o estilo berrante, pejado, à guisa de tela em que a derrama e copiosidade de tintas acaba por empastar o motivo.
O senso adjectival é o estalão por onde se afere o estilo do escritor. A precisão do Adjectivo, a sobriedade de seu emprêgo, a justa proporção entre o objecto que lhe recebe os efiúvios e os predicados que se lhe atribuem, são a virtude máxima do dificílimo ofício de escrever.
Acresce que o Adjectivo é a palavra sem a qual o substantivo seria impreciso, vago, indefinido, amorfo. Não basta dizer, por exemplo, que «está presente uma mulher». É mester explicar que espécie de mulher: bonita ou feia, inteligente ou estúpida, alta ou baixa, etc. O adjectivo pinta, especifica, elucida, ilustra o substantivo. Sem o adjectivo é o substantivo uma palavra nua, vazia, ôca. O adjectivo é a indumentária.
Não é a roupa excessiva que imprime ao talhe a linha flexuosa da elegância...
* in Revista de Língua Portuguesa (número 10, pág. 75 e ss., Rio de Janeiro, 1921) com o título Do Adjectivo, conforme transcrição do terceiro volume da antologia Paladinos da Linguagem (edição Aillaud e Bertrand, Lisboa, 1921), organizada por Agostinho de Campos. Manteve-se a grafia e respetiva norma originais.