A sugestão do consulente Pedro F. Múrias é muito oportuna, sobretudo porque a maioria das respostas que o Ciberdúvidas dá tem por base a norma e o conceito de correcto, que estão, aliás, associados. Devo, antes de mais, e em abono do rigor linguístico que a abordagem deste tema exigiria, dizer que não sou especialista no assunto e que o que a seguir se diz é uma posição pessoal, provavelmente deficitária tanto do ponto de vista conceptual como do ponto de vista metodológico.
O conceito de correcto sofreu algumas alterações nos últimos anos, ou melhor, foi enriquecido. Com o incremento que se verificou no conhecimento linguístico, consolidou-se a noção de que não há uma só forma de dizer correctamente as coisas, o que levou à introdução de conceitos como adequação, aceitabilidade e gramaticalidade. É cada vez mais generalizada, nesta aldeia global, a ideia de que uma língua é mais rica se tiver no seu seio uma grande diversidade, pelo que a variedade existente deve ser preservada e incentivada.
Poderemos dizer que a adequação está relacionada com a utilização concreta da língua, num determinado contexto, tendo em conta o assunto de que se pretende falar, a intenção do falante e o público a que a mensagem se destina. Evanildo Bechara, na Moderna Gramática Portuguesa, 37.ª edição revista e ampliada, 2001, diz o seguinte:
«A adequação ao discurso e à constituição de textos pode levar em conta o objeto representado ou o tema (e aí será considerada adequada ou inadequada), o destinatário (então será considerada apropriada ou inapropriada) ou à situação ou circunstâncias (e aí será considerada oportuna ou inoportuna).» Moderna Gramática Portuguesa, p. 35
O conceito de dever, associado à língua, está, para mim, muito ligado à adequação linguística. Para dar um exemplo extremo, seria totalmente inadequado vestir-me de preto, comprar uma coroa de flores e dirigir-me aos noivos num casamento para os felicitar. Aquilo que dizemos deve, pois, ser adequado.
A aceitabilidade relaciona-se de certa forma com a gramaticalidade e implica o envolvimento de aspectos não necessariamente associados à língua, mas relacionados com o conhecimento que cada um dos falantes de português tem do mundo em que vive e da forma como esse conhecimento se relaciona com a utilização da língua. Se pensarmos, por exemplo, no verbo morrer, considerando que se trata de um verbo intransitivo que apenas exige sujeito, mas que, como todos os verbos, permite a associação a outros verbos para constituir frases complexas ou a introdução de complementos circunstanciais, não teremos dificuldade em aceitar as frases que seguem:
(1) «O João morreu.»
(2) «O João morreu ontem.»
(3) «O João morreu, mas a sua memória permanece entre nós.»
Não teríamos igualmente dificuldade em assinalar como inaceitável a frase:
(4) «João morreu ontem e foi ao cinema.»
No entanto, do ponto de vista meramente gramatical, ou melhor, sintáctico, a frase complexa (4) está correcta, pois nenhuma regra sintáctica, ou seja, da relação estabelecida entre os elementos, foi quebrada. Trata-se, pois, de uma frase inaceitável porque o conhecimento que temos do mundo nos permite saber que a situação que a frase representa não pode ocorrer. A par desta situação em que uma frase gramaticalmente corre(c)ta não é aceite pela comunidade linguística, ou seja, todos os falantes, como pertencente ao grupo de frases bem formadas, casos há em todos aceitamos frases que violam as regras gramaticais. Decerto, já todos ouvimos ou pronunciámos frases como:
(5) «Eu parece-me que ele já veio.»
Do ponto de vista gramatical, embora hoje seja possível explicar linguisticamente o fenómeno subjacente a esta construção, esta frase é incorre(c)ta, pois o verbo parecer é impessoal e aqui surge com um sujeito expresso. No entanto, ela é aceitável num determinado registo.
Muitos outros exemplos poderíamos dar para ilustrar esta inter-relação entre aceitabilidade, gramaticalidade e mesmo correcção. Este último termo é, preferencialmente, associado à variante urbana culta da língua. A par da necessidade de reconhecer e aceitar como válidas todas as variantes de uma língua, recrudesce a necessidade de situar essas variantes no conjunto das possibilidades de realização que a criatividade linguística de cada falante permita. Há, pois, a necessidade de se estabelecer um padrão, uma norma. Na introdução da Gramática da Língua Portuguesa, de Maria Helena Mira Mateus e outras, 5.ª edição revista e aumentada, 2003, pode ler-se:
«De entre as variedades dialectais, uma é geralmente adoptada como padrão em relação ao qual a escola e o ensino explícito da língua mantêm uma relação preferencial e institucional, com objectivos socioculturais e comunicativos a atingir. É em relação ao padrão que as variantes podem ser contrastadas e posicionadas. O maior ou menor afastamento do padrão pode colocar questões de gramaticalidade ou de maior ou menor adequação às situações de uso, embora, do ponto de vista estritamente linguístico, uma variedade não se possa considerar mais correcta do que outra, uma vez que cada variedade funciona para a respectiva comunidade linguística que sistematicamente a usa, como factor de reconhecimento, de identidade linguística e cultura e de solidariedade cultural.
[…] A utilização normativa do padrão tem sido apresentada como prestigiante […] nas situações mais formais e institucionais» p. 34
Para o ensino da língua, para a sua divulgação, para a aceitação social em espaço culto urbano impõe-se, pois, a definição prioritária de uma variante que possa ser assumida como norma e que corresponde à que é falada nesse espaço urbano em contextos formais, ou seja, em situações que exigem a utilização da língua de forma cuidada.
Essa forma cuidada de utilização da língua é considerada por Evanildo Bechara, na gramática citada acima, o português exemplar, distinto do português comum, familiar, popular, etc.
O termo vernáculo articula-se com todos os conceitos anteriores e pode ser utilizado para designar realidades relativamente distintas. Escrever em vernáculo é, para um estudioso das línguas clássicas, escrever nas línguas oriundas do latim. Esse vernáculo foi evoluindo de forma distinta em cada uma das regiões ocupadas pelos romanos e deu origem às diversas línguas novilatinas, que têm traços característicos que permitem identificá-las como próprias de uma região, de um país. Com o tempo, vernáculo adquiriu o sentido de língua pura, que encontra em si própria as novas palavras de que vai necessitando, que rejeita a neologia. Não deixa de ser, no entanto, curioso que se queira “pura” a montante uma língua que nasceu do contacto entre o latim e as línguas que se falavam em cada uma das regiões, nunca tendo sido, portanto, uma “língua pura”.
Por outro lado, vernáculo, fazendo jus à origem da palavra – escravo nascido em casa do senhor –, designa o que é próprio de uma região ou de um país; do ponto de vista cultural, do ponto de vista linguístico. Vernáculo é aquilo que hoje, mais do que nunca, com a globalização, importa preservar, defender, pois representa, de algum modo, a identidade de um povo. Este aspecto, da maior importância, está em rota de colisão com uma outra realidade também ela fruto da globalização e, sobretudo, da difusão, numa língua dominante, dos conhecimentos científicos e técnicos das mais diversas áreas do saber.
As línguas, as culturas, estão cada vez mais em contacto. A tecnologia evolui rapidamente. Tão rapidamente, que as línguas consumidoras de tecnologia, que não produzem, não têm tempo de absorver os novos conceitos e criar palavras adequadas, renovando-se intrinsecamente. As autoras da Gramática da Língua Portuguesa dizem:
«As sociedades ocidentais tendem, assim, a assumir-se cada vez mais como multilingues e multiculturais, sendo difícil prever ou medir o impacto real que este novo tipo de relacionamento constitui para a manutenção ou mudança dos hábitos linguísticos de cada falante.» p. 35
Perante estes dois movimentos contrários, os países, as regiões têm necessidade de estabelecer estratégias de adaptação para manter a vernaculidade possível da sua língua. Como? O problema não é linguístico. É político, é cultural e é social. Não raro, os nossos cientistas escrevem apenas em inglês. Falta uma política da língua, que possibilite a criação de equipas multidisciplinares para analisar esta questão e para implementar, da forma mais rápida possível, terminologia vernácula, que modere a entrada de estrangeirismos.