É pertinente o seu anseio. A noção de correcto na língua não é consensual.
Para nos situarmos no raciocínio, comecemos por analisar alguns pontos de vista gramaticais.
Os seguidores da gramática tradicional respeitam a etimologia (grego e sobretudo latim). Insistem, por exemplo, que se deve escrever acção, dado que vem do latim `actione-´ (e argumentam que a consoante não articulada é até útil porque serve para abrir a vogal anterior). Consideram inaceitáveis `logotipo´, `biópsia´, por terem acentos tónicos discordantes dos respectivos étimos; condenam `camionete´, `biciclete´, `máquina a vapor´, considerados galicismos. Só consideram correcta a grafia que obedeça às leis da evolução da língua (analogia, vocalização, assimilação, etc.). Aceitam a norma oficial, mas alguns já reclamaram com saudosismo, como Alexandre Fontes: «Imaginem a palavra `phase´ escrita assim fase, não parece uma palavra, parece um esqueleto» (citado na obra: «A Demanda da Ortografia Portuguesa», de Ivo de Castro, Inês Duarte e Isabel Leiria).
Os seguidores da gramática normativa obedecem às regras gramaticais e tomam por base os bons escritores e as pessoas cultas. Padre António Vieira, Garrett, Eça, Machado de Assis, Torga, Vergílio Ferreira são modelos. Muitos consideram que certos escritores modernos são um atropelo à boa pontuação e à grafia consagrada no diálogo; que, nesses livros, grande parte dos leitores, formados nas escolas com a boa literatura, não passa das primeiras páginas, o que os afasta cada vez mais dos livros (limitando-se frequ[ü]entemente a ostentá-los nas estantes, quando são moda...).
No outro extremo, estão os arautos exagerados da modernidade. Para estes, «`o uso é que faz a norma´; `a comunidade linguística é soberana´, `é hoje considerado correcto o que já foi erro outrora, e o erro de hoje pode ser correcto no futuro´, `um desvio pode ser um factor de ressistematização´». Então, neste espírito, aparecem ousadias do género `stresse´ considerada palavra aportuguesada (quando st inicial sempre se converteu em es na nossa língua, como fizeram os brasileiros em estresse); ou aparecem propostas do género `toilete´, palavra aportuguesada pronunciada ¦tuᦠ(pronúncia estranha do ditongo oi..., [no Brasil é toalete], ou `entente´ aportuguesada com a pronúncia ¦ãt㦠(pronúncia estranha da sequência en).
Ora, entre estes critérios, qual deve ser a noção de correcto que devemos adoptar?
O da gramática tradicional, embora ainda útil para esclarecer muitas dúvidas (eu próprio recorro frequentemente à etimologia), não parece ser agora justificável como critério base. Já não se ensina latim nem grego nas escolas secundárias. Para um utente indiscriminado, recorrer a uma língua antiga (via de regra desconhecida...), para tirar conclusões sobre a nossa língua actual, nem sempre é frutuoso. Vale mais ir directamente a um dicionário idóneo actualizado. E, no exemplo indicado acima, se não é correcto escrever agora `ação´ ou `ótimo´ em Portugal, não repugna que passe a ser de futuro, pois a presença destas consoantes mudas é dispensável [por exemplo, em didactismo o c não faz rigorosamente nada].
Na escrita, numa comunidade relativamente uniforme, o que acontece no português europeu, as normas têm sempre a vantagem de permitir conseguir um bom entendimento entre os falantes que também as sigam. Além disso, ler e conhecer os bons autores, que na generalidade respeitem as regras, dá orientações para que a nossa fala seja igualmente apreciada, o que é socialmente prestigiante. É esta ainda, `do meu ponto de vista´, a orientação de correcto, que devemos seguir: ou seja, correcto é o que está de acordo com as normas ortográficas, com as regras básicas gramaticais e com o que recomendam as pessoas cultas sensatas, não tradicionalistas. Isto sem desprezo pelas liberdades artísticas, embora considerando que estão reservadas para este domínio da literatura e excluídas na mensagem com qualidade.
Na pronúncia, já não se pode ser taxativo: é tão correcta a pronúncia da capital como, por exemplo, uma outra qualquer do país, se forem consideradas construções regulares nas respectivas comunidades escolarizadas.
Por outro lado (quer na ortografia quer na sintaxe), se a queremos universal, temos de lembrar que a comum língua tem uma das suas grandes valias no facto de ser usada por quase duzentos milhões de falantes; isto é, na comum língua, são todas correctas as variantes legais em qualquer das «oito pátrias» da nossa língua. Neste critério abrangente, há, assim, alguma relatividade na noção de correcto.
Além disso, respeitar as normas não significa estratificar. É preciso aceitar que a língua está em permanente evolução com as relações entre os povos e com o aumento dos conhecimentos.
Em resumo, uma noção de correcto sensata é sobretudo aquela em que não esquecemos que a língua tem uma história respeitável, vive em nós, nos nossos pensamentos e é o veículo da comunhão com o outro, impondo-se sempre alguma univocidade. Se a alterarmos arbitrariamente, podemos não só delapidar o património, mas também desagregar o entendimento com o interlocutor. Há desvios que são de facto inaceitáveis.
Por outro lado, devemos estar sempre abertos à inovação, se esta respeitar a índole da língua. Por exemplo, admirar as impressionantes páginas de Vieira, na propriedade das suas escolhas e na riqueza daquilo que continuamos a dispor, não nos deve prender excessivamente ao passado e pôr em risco de ruptura com os falantes dos novos tempos.