É muito interessante este assunto, dado suscitar dúvidas de pessoas conhecedoras da língua.
Vou, então, convidar o consulente a seguir a minha reflexão, por meio da qual tentarei esclarecer a dúvida levantada a respeito da frase «Os portugueses gastam demais».
Quando referi Rebelo Gonçalves, em resposta ao consulente Carlos Fontoura, citei o Tratado de Ortografia da Língua Portuguesa, por ser uma obra do mesmo autor, mas mais recente do que o Vocabulário. Efectivamente, o Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa (da Academia das Ciências de Lisboa, coordenação de Rebelo Gonçalves) foi publicado em 1940, antes da entrada em vigor do Acordo Ortográfico de 1945, enquanto o Tratado de Ortografia da Língua Portuguesa, da autoria de Rebelo Gonçalves, foi publicado em 1947, tendo em conta o referido acordo ortográfico. Ora, nesta obra, o grande filólogo já não restringe o valor do advérbio, apenas refere (pág. 248) que demais é «advérbio, conjunção, pronome e elemento de várias locuções». E, noutra obra na qual colaborou, o Vocabulário Ortográfico Resumido da Língua Portuguesa, da Academia das Ciências de Lisboa, também de 1947, também se refere (pág. 132) que demais é «advérbio, conjunção e adjectivo ou pronome demonstrativo», fazendo também parte das locuções adverbiais «demais disso, ao demais». Em ambas as obras se indica «cf. a loc. adv. de mais, a que se opõe de menos».
Ou seja, considero que o que Rebelo Gonçalves postula finalmente é o que decorre do acordo de 1945: demais é um advérbio com diversas acepções, entre elas a de «demasiadamente», «excessivamente» (modificando, portanto, verbos, advérbios e adjectivos).
Outras obras de referência registam o advérbio demais nesta acepção, como, por exemplo:
— o Diccionario Universal Illustrado, dirigido por Eduardo de Noronha, Ed. João Romano Torres, 1921, vol. 4, pág. 837: «Adv. Em demasia; de sobejo || Além d’isto; além d’isso || Adj. unif. Excessivo»;
— o Grande Dicionário da Língua Portuguesa, de Cândido de Figueiredo, Dicionários Bertrand, 25.ª ed., 1996, vol. II, pág. 786: «demais 1. adv. Excessivamente. 2. adv. Além disso. 3. adj. Demasiado, excessivo»;
— o Prontuário Ortográfico e Guia da Língua Portuguesa, de Magnus Bergström e Neves Reis, Editorial Notícias, Lda., 28.ª ed., 1995, pág. 252, que especifica, a respeito de demais, na nota 20: «Adv., excessivamente, além disso; adj., demasiado; pron. (com artigo), os outros; cf. a loc. adv. de mais, a que se opõe de menos».
Nas gramáticas portuguesas, demais surge classificado como advérbio ora de modo, ora de intensidade, ora de quantidade. Aliás, a classificação dos advérbios tem variado ao longo dos tempos.
Interpreto, assim, que demais é um advérbio com o significado de «excessivamente», «demasiadamente», e que quando se fala em número de objectos, de coisas, ou seja, de substantivos, é que se usa a locução de mais. Quando o advérbio modifica um verbo, está precisamente em causa o modo, a intensidade, e não o número. Assim, continuo a considerar que a frase correcta é «Os portugueses gastam demais».
Vejamos, então, o que significam demais e de mais. São quatro as acepções a considerar.
A. Demais, uma só palavra, pode ser um pronome ou um determinante indefinido, equivalente a «outros», «outras», «restantes». Exemplos:
(1) «Entraram na igreja só três excursionistas; os demais ficaram a apanhar sol no jardim» (= os outros, os restantes).
(2) «Daquelas senhoras, uma comeu peixe, as demais comeram carne» (= as outras, as restantes).
(3) «Toda a gente já ouviu falar de Luís de Camões, de Fernando Pessoa, de Miguel Torga e dos demais escritores indicados nos programas de Português do ensino secundário» (= os outros).
B. Demais (ou ademais), uma só palavra, também pode ser um advérbio com a função de conector, que significa «além disso», «de resto». Exemplos:
(4) «Esse trabalho é muito difícil; demais, é mal pago» (= além disso).
(5) «Não lhe obedeças; demais, essa determinação não está no regulamento» (= de resto).
C. Demais, uma só palavra, pode ainda ser um advérbio que exprime o modo ou a intensidade e significa «muitíssimo», «excessivamente», «em demasia», «demasiadamente». Emprega-se intensificando formas verbais, advérbios ou adjectivos. Exemplos:
(6) «Ele fuma demais» (= fuma excessivamente, em demasia: o acto de fumar é praticado excessivamente).
(7) «Aquele rapaz dorme demais» (= dorme excessivamente, em demasia).
(8) «A jarra é frágil demais; vai partir-se» (= muitíssimo frágil, demasiado frágil).
(9) «Ele é bom demais» (= muitíssimo bom).
(10) «Obrigada, mas não vou convosco: estou cansada demais» (= demasiado cansada).
(11) «Para aquele pasquim, ele escreve bem demais» (= muitíssimo bem).
D. De mais, duas palavras, é uma locução adverbial (formada pela preposição de e pelo advérbio mais) que exprime a ideia de quantidade, de quantificação. Tem um significado equivalente a «a mais», oposta a «de menos», e aparece ligada a substantivos. Traduz a ideia de quantidade, e não a de modo (a de intensidade). Exemplos:
(12) «Comprei discos de mais» (= comprei mais discos do que devia).
(13) «São de mais os livros que tenho para ler» (= são mais livros do que aqueles que tenho tempo para ler; são livros a mais).
(14) «O chá tem açúcar de mais» (= tem mais açúcar do que devia).
Ainda um esclarecimento acerca do conteúdo dos pontos C e D: demais emprega-se nas situações em que se empregaria um advérbio, ou seja, uma palavra invariável, enquanto de mais se emprega quando se empregaria um quantificador, ou seja, uma palavra variável que quantifica um substantivo.
Exemplos:
(15) «Ele trabalha demais» (= ele trabalha muito – invariável, pois o advérbio modifica um verbo, o verbo «trabalhar»).
(16) «A jarra é pequena demais» (= a jarra é muito pequena – invariável, pois o advérbio modifica um adjectivo, o adjectivo «pequena»).
(17) «Ele tem problemas de mais para resolver» (= tem muitos problemas – variável, pois trata-se de um quantificador do nome «problemas»).
(18) «Neste canteiro há flores de mais» (= há muitas flores – variável, pois trata-se de um quantificador do nome «flores»).
A este propósito, gostaria de referir João Costa, que, na obra O Advérbio em Português Europeu (Edições Colibri, 2008, pp. 63-64), estabelece a diferença entre advérbios de quantidade e grau (entre os quais, refere o advérbio demais) e quantificadores. Refere este autor que muitos dos advérbios de quantidade e grau «podem ser utilizados como quantificadores no sintagma nominal» e que «a diferença entre advérbios e quantificadores pode ser detectada pelo facto de apenas estes flexionarem em género e número», acrescentando que «os advérbios, sendo palavras invariáveis, não apresentam estas marcas de flexão». E dá os seguintes exemplos:
(19) «Tenho bastantes livros» (bastantes – quantificador)
(20) «Já sei bastante» (bastante – advérbio)
(21) «Tenho muitos livros» (muitos – quantificador)
(22) «Comi muito» (muito – advérbio).
Ora, com o uso das locuções «de mais» ou «em excesso» consegue-se esta quantificação de coisas ou objectos que o advérbio não permite, pois é invariável.
Espero ter contribuído para o esclarecimento das dúvidas existentes sobre este assunto, mas continuo disponível para responder às observações que o consulente considere por bem fazer.