DÚVIDAS

Missanga (Portugal) e miçanga (Brasil)

Sou leitor assíduo do Ciberdúvidas e tenho esclarecido inúmeras questões pela simples consulta do vosso sítio. Passo a expor um caso que merecerá a vossa atenção.

Aprendi a escrever a palavra missanga com duplo s e nunca a tinha visto escrita de outra forma, até constatar numa simples pesquisa do Google que aproximadamente 50% (!) dos sítios dedicados ao tema usam a forma miçanga (a maioria são sítios brasileiros). Nos dicionários e prontuários que consultei não consta a forma miçanga.

Pergunto quais as grafias admissíveis para esta palavra.

Agradeço desde já a atenção e parabéns pelo serviço que prestam à língua portuguesa.

Resposta

Nos dicionários portugueses consultados (dicionário da Academia das Ciências de Lisboa, Grande Dicionário da Língua Portuguesa, da Porto Editora, dicionário de José Pedro Machado) a forma registada é missanga. No entanto, o Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa e o Dicionário Unesp do Português Contemporâneo, ambos brasileiros, acolhem a mesma palavra grafada com çmiçanga.

Porquê a variação? Andarão os brasileiros enganados? Vou que assumir que não estão e procurar razões para que não estejam. Transcrevo para já do Dicionário Houaiss a passagem que dá conta da etimologia da palavra em apreço (note-se que a forma e o conteúdo são próximos do artigo que Machado, op. cit., também dedica a missanga — ou miçanga):

«orig. contr. segundo Nei Lopes, do quimb. misanga "conta de vidro", pl. de musanga "conta"; já para Gonçalves Viana, trata-se de voc. de orig. cafre mausanga, pl. de usanga "id."; segundo o mesmo filólogo, não é certo admitir-se a hipótese esposada por Nei Lopes, visto que o prefixo mu-/mi- que marca respectivamente sing./pl. leva à depreensão do rad. -sanga que, segundo o dicionário do africanista suíço Héli Chatelain, quer dizer "achar", que evidentemente nada tem a ver com a acp. "conta de vidro"; finalmente Renato Mendonça dá como orig. o cafre, diferindo de Gonçalves Viana quanto ao étimo, que para ele é misanga, vendo em mi- um prefixo de classe [...].»

À primeira vista, parece que dp ponto de vista fonético e fonológico missanga seria o melhor aportuguesamento, porque assim se consegue indicar a presença de uma sibilante surda no quimbundo (ou cafre) misanga. Mas, sabendo que as ortografias portuguesa e brasileira têm também critérios etimológicos no uso de certas letras e dígrafos (por exemplo, o j e o g antes de e ou i, o emprego de x), pode-se argumentar que a grafia com -ss- só estará certa se representar etimologicamente um som [s] com articulação apical (o chamado «"s" beirão»). Se o termo africano não incluir esse [s], então a alternativa é recorrer a ç, que até ao século XVI correspondia a um outro tipo de som, o [s] predorsal. É a este som que modernamente se associam quer s- em princípio de palavra quer -ss- e -ç- em meio de palavra no português europeu e no português brasileiro, sendo necessário conhecer a história de cada vocábulo para se identificar a grafia correcta, uma vez que, como vemos, já não há diferença na pronúncia.

Em suma, sugiro que os brasileiros escrevem miçanga porque consideram que esta grafia reflecte melhor a história da palavra. Repito: trata-se de uma mera sugestão, que terá de ser confrontada com mais dados.

ISCTE-Instituto Universitário de Lisboa ISCTE-Instituto Universitário de LisboaISCTE-Instituto Universitário de Lisboa ISCTE-Instituto Universitário de Lisboa