A relação entre um grafema e fonema é algo que me suscita as maiores curiosidades. Como qualquer intelectual globalizado, o meu cosmopolitismo manifesta-se pelo conhecimento de várias línguas. Já não é fácil saber qual é a mais apropriada para cada sujeito em discussão. Dependendo da vivência associada ao tópico pode ser o francês, espanhol, mas também o inglês ou rudimentarmente o italiano, o alemão e até o grego. Por ter sido exposto de uma maneira ou outra a este leque de criações europeias, sou obrigado a caracterizar-me como um europeizado.
Paradoxalmente é o português que me aproxima da minha dimensão africana, porque ele serve de alimento a uma outra língua – o kriol – que é a raiz da contemporaneidade guineense.
Do português interessam-me muitas coisas, a começar pela relação específica que existe em qualquer língua entre grafema e fonema. Em nenhuma outra língua, nem mesmo em kriol (devido à sua jovem normalização), me sinto tão à vontade. Aqui posso emprestar as palavras mais densas, os verbos mais aristocráticos, as sílabas mais estridentes, as expressões mais amargas, sem qualquer hesitação fonética. É um atributo que me aproxima da língua de tal forma que ela se torna minha, propriedade pessoal, privada, individualizada... capaz de projectar os sentimentos mais egoístas e introvertidos. E, no entanto, eu sei... eu tenho plena consciência que ela também é propriedade de milhões de pessoas de Braga a Canchungo, de Londrina a Bakau, de Newark a Lobito, de S. Vicente à Beira, de Penang à Ilha do Príncipe, muito para além das capitais de quem se atribui a lusofonia. É essa riqueza, que atravessa firmemente todas estas civilizações da língua portuguesa, que me emociona e me permite reconhecer, aqui e ali, nos mais diferentes espaços e contextos, o sentimento de que não estou só... no mundo.
Texto especialmente para o Ciberdúvidas, na sequência do contributos do angolano Pepetela, do cabo-verdiano Germano Almeida, do moçambicano Mia Couto e do português José Saramago.