A Nossa Língua Portuguesa* - Antologia - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
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A Nossa Língua Portuguesa*
A Nossa Língua Portuguesa*

Lembro-me que aí pelos meus dez anos eu e meu primo André disputávamos renhidamente qual de nós dois era melhor ajudante de padre e por isso era garantido que quando um estava com nho padre logo o outro arranjava maneira de aparecer. Ora certo dia tinha eu quase que secretamente conseguido esgueirar-me para dentro da casa do padre, mas eis que logo de seguida batem à porta. Quem será, questionou nho padre. Quase é André, respondi. Nho padre não entendeu no imediato mas depois deve ter feito alguns jogos de cabeça porque começou a rir: Quase não, disse ele, ou é André ou não é. Quase é André é que não pode ser. Vai ver!

Fui e de facto era André. Nho padre continuava a rir mas eu não via onde podia estar a piada. Porque desde o princípio que eu tinha desconfiado que era o André que batia, mas de qualquer modo ainda não o tinha visto e por isso não podia ter a certeza de ser ele e poder garanti-lo. De modo que o "quase" era a palavra correctíssima para indicar aquela relativa dúvida.

Isso para mim. Mas nho padre era indiano, tinha aprendido o português de Portugal e da gramática, e então para ele o «quase» só podia significar qualquer coisa «a meio de» e um «quase é André» não lhe dizia absolutamente nada.

Nho padre era muito mais velho e sabia muito mais e bem se esforçou por fazer-me aceitar o meu erro, mas mesmo nessa altura não creio que me tenha convencido de que tinha falado mal. É que sempre confessei o meu fraco pela língua portuguesa, mas adoro-a sobretudo com esse delicioso sabor a crioulo, quando as palavras adquirem significações muitas vezes tortuosas mas tão verdadeiras que é impossível não reconhecer uma ainda que inconsciente sabedoria na sua adulteração. Há tempos a minha empregada doméstica falava-me da sua filha que tinha sido "entornada" no hospital. Não é entornado que se diz, corrigi-a, é internado. Mas ela logo me acusou de estar sempre a brincar com coisas sérias, se toda a gente diz "entornado"… Aliás, ainda há dias ela veio solicitar-me um "apresto" de dinheiro. O que tu queres é um "empréstimo, sorri quase a medo, mas ela logo se alarmou: Não, não é para ser pago de uma vez, esclareceu-me, por isso é que estou a pedir-lhe um apresto, descontado mês a mês.

Confesso que fiquei sem bem entender a razão profunda dessa mudança de significação, apenas me tendo ocorrido que "apresto" quer dizer «em prestações». Mas certamente que algum dia vou chegar lá. Por exemplo, em alguns dos nossos meios que poderíamos ter a tentação de dizer menos esclarecidos, a expressão "impávido e sereno" transformou-se pura e simplesmente em "emparvo e sereno". Numa primeira impressão podemos ser tentados a pensar numa pequena deturpação de sons, mas depois de repararmos nas nossas próprias pessoas serenamente emparvalhadas diante de certas manifestações político-culturais, ou então frente aos discursos dos nossos políticos a convencer-nos que estamos vivendo no melhor dos mundos, temos que admitir que a língua enriqueceu-se com mais uma expressão poderosa e vivificante.

Há poucos dias um amigo meu, brasileiro, hospedado aqui num hotel em S.Vicente telefona-me: Germano, vem cá!, mas enquanto estou pensando, e começo mesmo a dizer, que no momento não me dá jeito nenhum sair de onde estou para ir ter com ele, ele nem me ouve e continua despejando não sei quantas palavras sobre mim. Pouco depois volta a repetir o "vem cá!" e acabo finalmente entendendo: Ele apenas está a chamar a minha atenção para qualquer coisa.

Sem dúvida! Gosto desta língua que me permitiu ler no original as deliciosas prosas de Eça de Queirós ou Jorge Amado, entender e apreciar o «vem cá!» e nunca me impediu de sentir e afirmar a minha identidade de homem cabo-verdiano.

 

N.E. (7/06/2019) – Observe-se que a forma nho (= senhor) tem registo dicionarístico sob a forma nhô [cf. Vocabulário da Língua Portuguesa (1966), de Rebelo Gonçalves; Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa (2001); dicionário de língua portuguesa da Porto Editora (disponível na Infopédia); e Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa (Instituto Internacional da Língua Portuguesa)]. Mesmo assim, mantém-se a forma nho, que é variante de nhô e grafia recorrente na escrita dos dialetos cabo-verdianos; por exemplo, Nho Lobu,  Nho Tio Lobu (cf. Ana Josefa Gomes Cardoso, As Interferências Linguísticas do Cabo-Verdiano no Processo de Aprendizagem do Português, Lisboa, Universidade Aberta, 2005, págs. 37 e 38). Também se conserva a sequência final do antepenúltimo parágrafo – «temos que admitir que a língua enriqueceu-se com mais uma expressão poderosa e vivificante» –, dada a instabilidade da colocação do pronome átono nas orações subordinadas que parecem revelar certas variedades do português; note-se, porém, que, em Portugal, o uso correto é a próclise em tais contextos: ««temos que admitir que a língua se enriqueceu com mais uma expressão poderosa e vivificante».

Fonte

Texto escrito especialmente para o Ciberdúvidas, na sequência dos contributos do angolano Pepetela, do guineense Carlos Lopes, do moçambicano Mia Couto.e do português José Saramago]

Sobre o autor

Germano Almeida (Boa Vista, 1945) é um escritor cabo-verdiano, formado em Direito, em Lisboa. Nas suas obras, recorre ao humor e à sátira para denunciar a hipocrisia na sociedade cabo-verdiana. Das suas obras, destacam-se: O Meu Poeta (1989), As Memórias de um Espírito (2001), Eva (2006) e O Fiel Defunto (2018). Prémio Camões 2018.