Edite Prada - Ciberdúvidas da Língua Portuguesa
Edite Prada
Edite Prada
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Edite Prada é consultora do Ciberdúvidas. Licenciada em Línguas e Literaturas Modernas, variante de Português/Francês, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa; mestrado interdisciplinar em Estudos Portugueses, defendido na Universidade Aberta de Lisboa. Autora de A Produção do Contraste no Português Europeu.

 
Textos publicados pela autora

Pergunta:

Já por várias vezes ouvi a formulação «gastar de» quando se pede permissão para consumir algo que pertence a outra pessoa, como por exemplo: «Posso gastar do teu leite?» O uso da preposição «de» com o verbo «gastar» está correto neste caso?

Resposta:

O problema que o consulente coloca insere-se numa área designada «regência verbal», ou seja, de que forma e com que vocábulos (o interesse maior relaciona-se com o uso das preposições) um verbo (e não só) se completa.

Consultando o Dicionário de Verbos Portugueses, da Texto Editora, poderemos verificar que o verbo gastar é:

1 – Transitivo direto, completando-se com um complemento direto, em exemplos como «O Manuel gastou o material todo.»
2 – Transitivo indireto, completando-se com um complemento oblíquo, que, no dicionário referido, surge como preposicional. O exemplo que surge é «A minha mãe há dois anos que gasta da mesma mercearia».
3 – Transitivo direto e indireto, completando-se com um complemento direto e um complemento oblíquo introduzido pela preposição em: «A avó gastou as suas poupanças na educação da neta.» 

O dicionário refere ainda mais dois pontos (intransitivo e pronominal), mas não são relevantes para a análise da frase em apreço.

A frase que a pergunta submete à apreciação do Ciberdúvidas parece inserir-se na estrutura indicada no ponto 2, em que o complemento oblíquo introduzido pela preposição de indica a fonte, ou origem da ação desencadeada pelo sujeito.

No caso da frase em apreço, o sentido veiculado pelo complemento não se associa a origem; a ter um valor claro, talvez seja «destino», ou tema, designando a entidade que vai ser gasta. Além disso, veicula uma ideia de partitivo:

(1)    «Posso gastar do teu leite?»

De qualquer forma, não cremos que se trate de uma utilização inadequada, ainda que possa ser pouco frequente. Estamos perante uma frase em que o verbo gastar se completa com um complemento oblíquo introduzido pela preposição de.

Pergunta:

Em aulas de gramática, especialmente de morfologia, costuma-se explicar o processo de substantivação principalmente com o uso de artigos (definidos ou indefinidos). No entanto, considerando que os substantivos podem ser determinados por outras classes de palavras nominais, como pronomes, adjetivos e numerais, seria correto dizer que esse processo também pode ocorrer por meio deles?

Por exemplo, em uma frase como «Naquele momento, Maria lançou estonteante olhar ao seu amado, o qual, também a fitava apaixonado», o substantivo olhar é determinado pelo adjetivo estonteante

Isso leva a uma nova questão: estaria esse adjetivo funcionando como um simples determinante do substantivo ou como uma espécie de determinante substantivador? Ou, neste caso, ambas as classificações se aplicariam igualmente?

Em síntese, ainda que essa questão mostre-se elementar, ela tem me inquietado.

Desde já, agradeço qualquer esclarecimento.

Resposta:

A substantivação insere-se num processo de formação de palavras designado como derivação imprópria, ou, mais recentemente, conversão.

Todas as gramáticas e dicionários consultados, quando inserem exemplos, recorrem, efetivamente, aos artigos, quer definidos, quer indefinidos. Além disso, seja qual for a classe a que pertence a palavra sujeita a um processo de conversão, ela suporta a anteposição de um artigo.

Poderemos, pois, dizer que a anteposição de um artigo, definido ou indefinido, permite identificar todos os processos de conversão em que a classe final, ou de chegada, seja o substantivo, ou nome. Seguem-se exemplos retirados de um artigo de Daniela Otsuka. O sublinhado é nosso.

(1)    O andar de Regina era triste.
(2)    O não sem explicação se torna pesado.
(3)    Daniel exclamou um oh muito triste.

Por outro lado, Vânia Duarte afirma «- Não devemos confundir substantivos acompanhados de artigos com palavras substantivadas, uma vez que nesse último caso o artigo tem a função de modificá-las, e não de acompanhá-las, determinando-as.»

Ao analisar a frase que submete a apreciação,

(1)    «Naquele momento, Maria lançou estonteante olhar ao seu amado, o qual, também a fitava apaixonado»

importa ter em conta que, sendo falantes da variante europeia do português, podemos incorrer em alguma falha. Isto, porque, à primeira vista, diríamos que a frase carece de um artigo indefinido:

(1.1)    Naquele momento, Maria lançou um estonteante olhar ao seu amado, o qual, também a fitava apaixonado.

Se esse artigo fizer mesmo falta, como nos parece, então o processo de subst...

Pergunta:

Relativamente às conjunções consoante e conforme, gostaria de saber se as seguintes frases estão corretas:

(i) «Consoante a noite caía sobre a cidade, uma aura de serenidade dispersou-se pela ala três da maternidade Francisco de Noronha.»

(ii) «Conforme iam repondo o stock dos fármacos, o farmacéutico lembrou-se do pedido que lhe tinham enviado os enfermeiros da manhã.»

A minha dúvida é alusiva a essas conjunções, ou seja, podem empregar-se dessa forma? Já me ficou claro que a conjunção segundo não faz sentido nestes contextos, contudo, este é um tema que me suscita bastantes dúvidas.

Agradeço, desde já, toda a informação que me possam proporcionar.

Resposta:

Analisemos separadamente as duas frases.

A frase (i) «Consoante a noite caía sobre a cidade, uma aura de serenidade dispersou-se pela ala três da maternidade Francisco de Noronha.» está correta.

O termo consoante pode ser preposição, ainda que acidental, ou atípica, como refere Evanildo Bechara, na Moderna Gramática Portuguesa, 2001, pág. 301, Celso CunhaLindley Cintra na Nova Gramática do Português Contemporâneo, 1984, pág. 552 e Eduardo Paiva Raposo, na Gramática do Português, da Fundação Calouste Gulbenkian, 2013, pág. 1562.

Embora os gramáticos não costumem inserir consoante na lista das conjunções, muitos dicionários identificam essa possibilidade e a frase em apreço justifica essa interpretação.

O termo consoante é, efetivamente, nesta frase, conjunção, veiculando um sentido do que Maria Lobo, na Gramática do Português da Gulbenkian, pág. 2005, descreve para a locução «à medida que» apresentada no dicionário como equivalente, em alguns contextos, às formas consoante e conforme quando usadas como conjunções:

«As orações introduzidas por à medida que estabelecem uma correlação temporal entre a ação subordi...

Pergunta:

Na frase «caminharam o dia todo», como classificar sintaticamente a palavra «todo»?

Resposta:

Na interpretação mais comum, o quantificador universal todo integra o grupo nominal que, na frase em apreço, desempenha a função sintática de modificador do grupo verbal, com valor temporal, do verbo «caminharam», cujo núcleo é o nome «dia», completado com o quantificador «todo» e o determinante «o», constituindo, na globalidade, uma estrutura a que se atribui a designação de sintagma, ou, segundo o Dicionário Terminológico, grupo, como designámos acima.

Numa interpretação mais inovadora, poderíamos considerar que se constitui um «modificador do nome», integrando sempre, todavia, o sintagma, ou grupo nominal.

Com efeito, todo é um quantificador universal que, como diz Ana Maria Martins na Gramática da Língua Portuguesa (Fundação Calouste Gulbenkian, pp. 359), «pode vir separado do resto da expressão nominal, na construção chamada “flutuação de quantificador”». Dá como exemplos:

1 «As maçãs estão todas verdes»

2 «Os camponeses trabalharam todos até à noite.»

Eduardo Paiva Raposo e Matilde Miguel afirmam na Gramática do Português, vulgo, Gramática da Gulbenkian, p.723, que «Os quantificadores todos e ambos iniciam o sintagma nominal e precedem um nome especificado por um determinante definido (artigo ou demonstrativo), [e] em particular, não podem preceder diretamente um nome.»

«A posição ocupada por estes quantificadores leva por vezes a considerar que se combinam, efetivamente, com um sintagma nominal completo, criando um novo sintagma de classe diferente, do qual são o núcleo, ao qual se pode chamar sintagma quantificacional (abreviado SQ)»

Exemplificam com:

...

Pergunta:

Na oração «Singram soberbas naus que eu não verei jamais», como explicar a razão de que desempenhar a função sintática de complemento direto?

Obrigada.

Resposta:

Que é o complemento direto de «verei» por representar, ou substituir, na frase, a palavra naus.

Estamos perante uma frase complexa em que a oração relativa «que eu não verei jamais» integra o grupo nominal que serve de sujeito:

«Singram soberbas naus [que eu não verei jamais].»

Sujeito – «soberbas naus que eu não verei jamais»
Predicado – «singram»

O sujeito desta frase complexa é constituído por um grupo nominal que tem dois modificadores restritivos, um deles constituído pela oração subordinada adjetiva relativa restritiva «que eu não verei jamais». A análise do grupo nominal que serve de sujeito –«soberbas naus que eu não verei jamais» – é a seguinte:

Núcleo do grupo nominal (e, consequentemente, do sujeito) – «naus»
Modificador um do nome – «soberbas»
Modificador dois do nome (a frase relativa) – «que eu não verei jamais»

O pronome relativo que tem como antecedente «naus» e, enquanto pronome, desempenha uma função na oração relativa «que eu não verei jamais», a função de complemento direto de «não verei»:

Sujeito – «eu»
Predicado – «que não verei jamais»
Verbo – «não verei (jamais)»

Nota:

Como o verbo ver é transitivo direto, é completado com um complemento direto, que vai ser constituído pelo vocábulo – o pronome que – que representa o objeto que não vai mais ser visto....