Versão integral da carta enviada ao semanário Expresso, que a publicou (com cortes de vários extratos) na edição de 25 de outubro de 2014 – em resposta ao que escrevera uma semana antes a colunista Ana Cristina Leonardo, no caderno Atual, sobre o Ciberdúvidas e o que aqui se recomendava quanto à grafia “jihadista"/jiadista. Acrescentou-se, no fim, uma nota a este esclarecimento.
Na sua crónica da semana passada [18/10], na Atual, do Expresso (“E pur si muove!”, pág. 39), Ana Cristina Leonardo comentou depreciativamente uma recente observação do Ciberdúvidas sobre o uso da forma incorreta “jihadista” na comunicação social portuguesa. Nada teria a dizer – a opinião é soberana, mesmo que absurda –, não fora o caso de a autora ter transcrito distorcidamente o que aí se elucidava. Assim:
1) Escreveu-se no Ciberdúvidas: «(...) no contexto da tradição ortográfica – isto é, dos princípios e critérios decorrentes da reforma de 1911 e mantidos pelos diferentes acordos ortográficos que se têm sucedido até agora –, é impossível grafar um h entre duas vogais.»
2) Desta argumentação, Ana Cristina Leonardo limitou-se a transcrever a última frase («É impossível grafar um h entre duas vogais»), escamoteando ainda a explicação que se acrescentava sobre esta regra ortográfica do português, em vigor há mais de cem anos: «Com a reforma ortográfica de 1911, as palavras que tradicionalmente tinham h medial etimológico perderam-no; exemplos: inhibir – inibir; exhortar – exortar; sahir – sair; coherente – coerente; ahi – aí; prohibir – proibir. Esta alteração nunca foi posta em causa pelas normas ortográficas subsequentes – nem pelo Acordo Ortográfico de 1945, nem pelo Acordo Ortográfico de 1990 (...).»
[É claro que Ana Cristina Leonardo é livre de escrever à maneira dos séculos XVIII e XIX – escrevendo o h onde mais lhe aprouver. Porque não, já agora, voltar a usar o ph em vez do f, ou o y no lugar do i latino?]
3) Em conclusão: escrever em português, hoje, obedece a critérios e a princípios ortográficos próprios e devidamente fundamentados – e que devem ser especialmente considerados no que diz respeito aos estrangeirismos entrados na nossa língua. Por isso mesmo, se já temos dicionarizada a forma jiade de acordo com os padrões morfológicos e as regras ortográficas do português – logo, sem o h da grafia inglesa –, só por ignorância se persistirá no anómalo “jihadista”.
[O h da palavra inglesa "jihad” representa uma aspirada, reproduzida foneticamente pelos anglófonos – inexistente, de todo, na pronunciação em português.]
P.S. – Ana Cristina Leonardo também não primou pelo rigor na “apresentação” que fez do Ciberdúvidas. Descrevê-lo como mero consultório linguístico e «seguidor do Acordo Ortográfico» (tanto como o Expresso e a generalidade dos órgãos de informação portugueses...) é fazer tábua rasa de duas das suas principais facetas: a diversidade dos seus conteúdos (até no acolhimento, em pé de igualdade, de toda a querela pró e anti-AO) e a natureza de serviço público que presta, gracioso e sem fins lucrativos, como não há outro, similar, em todo o espaço da lusofonia.
N.E. – Seis notas adicionais ao que se transcreveu em cima:
a. Vindo de quem escreve segundo o Acordo Ortográfico – e até podia invocar o que fazem outros colaboradores do Expresso –, não deixa de surpreender esta diatribe contra o Ciberdúvidas por... seguir igualmente o que passou a vigorar oficialmente no país, a partir de janeiro de 2012.
b. E... – absurdo ainda maior – por assegurar, no seu consultório linguístico, todos os esclarecimentos solicitados, sejam eles quais forem, Acordo Ortográfico inclusive, como é natural. Repetindo o que já aqui foi assinalado noutras circunstâncias: só não percebe isto quem gostaria de ver o Ciberdúvidas alienar o seu papel de espaço-referência que é sobre a língua portuguesa1 – em toda a sua diversidade histórica e geográfica, e no acolhimento equidistante de quaisquer correntes ou pontos de vista divergentes.
1 Espaço-referência passa precisamente pela separação clara do que é gostar mais, menos ou nada do Acordo Ortográfico – remetido para as rubricas próprias de opinião, como é o caso vertente – e o tratamento rigoroso do que é informação e esclarecimento factuais. Só quem confunde e distorce planos tão antagónicos, e preferisse o Ciberdúvidas a reboque desta ou daquela campanha, pró ou anti, se permite escrever o que escreveu sobre as consoantes mudas em Egipto e óptica… assim consideradas (mudas) desde a reforma ortográfica de 1945. E, por isso, estão omitidas na transcrição fonética de qualquer dicionário, ainda antes do presente Acordo Ortográfico. Quanto à palavra espectador, estão consagradas as duas variantes ortográficas (com c e sem c). Todos os esclarecimentos dos critérios adotados estão disponíveis aqui, aqui e aqui.
c. Quanto ao anómalo “jihadista", trata-se, afinal, de uma forma híbrida, sem qualquer lógica: toma como base um estrangeirismo – no caso, escrito de acordo com as regras do inglês, “jihad” – com um sufixo português (-ista). Nem é português, nem é inglês, portanto. E como lê-la? À inglesa, com o h aspirado dos anglófonos, ou com o h apenas para enfeite? Uma risota, no mínimo.
d. Acresce que a palavra nos chegou originalmente do árabe, que não tem sequer o mesmo sistema de escrita.2Por isso, nada nos obrigaria a adotar uma transliteração que representasse um som inexistente na língua portuguesa. Jiade e jiadismo é como regista o recém-publicado Dicionário de Arabismos da Língua Portuguesa, de Adalberto Alves (Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, Instituto Camões, pág. 578).
2 Quanto à natureza do seu sistema de escrita, o árabe vem sendo classificado nos últimos anos como sendo um abjade – i.e., sistema que só representa ou representa maioritariamente consoantes e em que o valor das vogais é assumido pelo contexto fonológico ou pelo conhecimento lexical dos falantes. A classificação tipológica dos abjades no âmbito dos sistemas de escrita é debatida: uns consideram-no um consonantário, outros um silabário, outros ainda um alfabeto. Nas tipologias mais recentes, formam um grupo à parte, distinto do dos alfabéticos “puros” ou mesmo considerado não alfabético. Já agora, só para completar: as vogais grafadas no árabe servem não só para grafar as vogais longas, mas também como suporte para marcas gráficas, entre outros. Os textos vocalizados – isto é, com as vogais todas marcadas explicitamente – são raros; por exemplo, algumas edições do Corão e textos infantis (agradece-se esta nota a José Pedro Ferreira).
e. De resto, como é bem sabido, o árabe é uma língua com uma ligação ao português bem mais antiga do que o inglês – sendo o caso vertente exemplar da reimportação acrítica nos meios de comunicação social nacionais do que “bebem” diretamente dos media anglófonos.
f. E não deixa de ser curioso ver, entre quem se arreiga tanto no imobilismo ortográfico, os mais prolixos utilizadores de anglicismos a eito – e sem cuidarem, sequer, de lhes dar a «feição portuguesa», como há mais de 60 anos (bem) recomendava Manuel Rodrigues Lapa na sua tão preciosa e, está visto, pouco lida Estilística da Língua Portuguesa. Só mesmo tamanho défice de conhecimento explica a alusão à intervenção do então presidente da Portugal Telecom – sobejamente apontada (e ridicularizada) como o pior de um certo e pedante linguajar anglófilo.
Cf. O contraponto desta controvérsia, em: E pur si muove! + "Jihaditas" contra jiadistas
In semanário Expresso de 25 de outubro de 2014, pág. 36.